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Fonógrafos e Gramofones

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É conhecida a fórmula algébrica com que abre A Cidade e as Serras (1900): Suma ciência x Suma potência = Suma felicidade. Esta teoria de Jacinto, no seu 202 parisiense, exigia os últimos inventos da Civilização, ou seja, da Cidade, pois mais nada existia para o nosso Príncipe da Grã-Ventura. E qual a representação ideal de tanta invenção? É o próprio a responder: «– Aí tens tu, o fonógrafo!... Só o fonógrafo, Zé Fernandes, me faz verdadeiramente sentir a minha superioridade de ser pensante e me separa do bicho.» (Queirós, s. d.: 16)
Jacinto possuía outros «utensílios misteriosos» (p. 60), como o telégrafo e o telefone, máquinas de escrever e contar, o grafofone e o microfone.
“Telégrafo” está em título de jornais desde 1809, na senda do telégrafo óptico inventado por Claude Chappe (1793). Em 1844, Morse liga Washington e Baltimore; no final da década, a ligação Berlim-Viena inspira outras, desaguando na União Telegráfica Internacional (1865). As regatas de Kingston têm transmissão telegráfica sem fios em 1898. Os contactos multiplicam-se por milhões, anualmente (cerca de 30 milhões, em 1870), decuplicando na viragem do século. Folhetinista anónimo do Jornal do Comércio (25-II-1868), ao projectar “O jornalismo no ano 2000”, prenuncia a internet: «O telégrafo eléctrico generalizar-se-á, cada cidadão terá o seu telégrafo em correspondência mútua, de maneira que em um minuto se saberá o que se passa nos pontos mais afastados e, em Lisboa, se poderá saber, de instante a instante, até à vida caseira do mais boçal esquimó; com o que os povos hão-de folgar, deleitar-se e instruir-se.»
A cacofonia noticiosa, tal a massa de artigos vinda no telégrafo, obriga a ordenar as páginas por secções e colunas, fazendo do jornal um mosaico (Mosaico é título regular) ‒ imagem reforçada na televisão ‒ , à imagem de sociedade que, simultaneamente, molda. O medium é, também, mensagem, no reconhecimento de que «toutes les technologies créent petit à petit un milieu humain totalement nouveau». Já com as vias, meios de transporte e comunicação se percebia múltipla transformação: de quem expedia, recebia, tantas vezes da mensagem, do veículo e mesmo do transportador, se houvesse lugar a tradução. «L’usage de n’importe quel médium ou prolongement de l’homme modifie les modèles d’interdépendance des hommes, tout comme il modifie les rapports entre nos sens.» (McLuhan, 21977: 12; 113-114) No século do carril, comboio ou metropolitano, ia-se além da estrada, da roda de carroça ou diligência e do impresso. A era da electricidade tornaria tudo mais veloz ‒ no século XX.     
Entretanto, Bell e Elisha Gray correm a patentear (1876) o telefone, coqueluche de Paris-Bruxelas e bolsas de Paris-Londres em 1887 e 1890. Em finais de 1877, ensaiam-se comunicações entre Lisboa e Carcavelos e entre os observatórios meteorológico da Escola Politécnica e astronómico da Tapada da Ajuda, assistindo aqui o rei D. Luís. As primeiras redes só em 1882 são inauguradas no Porto e em Lisboa (26 de Abril, com 23 assinantes na capital, que falavam entre as 8 e as 21 horas).
Era, todavia, no fonógrafo que as senhoras convidadas desejavam ouvir uma ária da Patti. Jacinto respondeu: «– Ária da Patti... Eu sei lá! Todos esses rolos estão em confusão. Além disso o Fonógrafo trabalha mal. Nem trabalha! Tenho três. Nenhum trabalha.» (p. 67) Três fonógrafos, naturalmente inspirados pelo telégrafo e telefone. Luís Cangueiro (2008) tem mais.
Jacinto instalara, ainda, «prodigamente dois Teatrofones, cada um provido de doze fios», e as senhoras e senhores colavam um receptor ao ouvido, para «saborear» cançoneta. José Fernandes é o único alheado de tanto progresso. Observa que, «de cada orelha atenta, que a mão tapava, pendia um fio negro, como uma tripa». De pálpebras fechadas e meditabundo, certo historiador, «com o ‘receptor’ na ponta delicada dos dedos, [...] gravemente cumpria um dever palaciano» (p. 71). Certa madame sorria lânguidamente, «como se o fio lhe murmurasse doçuras»: «Então, ante aqueles seres de superior civilização sorvendo num silêncio devoto as obscenidades que a Gilbertte lhes gania, por debaixo do solo de Paris, através de fios mergulhados nos esgotos, cingidos aos canos das fezes – pensei na minha aldeia adormecida.» (p. 72) – confessa José Fernandes. Subitamente ‒ nessa expectativa, grave ou lânguida, mas acrítica, impossibilitados de interconexão ‒, percebem que não é a Gilbertte que canta, ouvem-se somente guinchos e zumbidos, todos largam os fios: este desastre sonoro anuncia outros – vai começar um jantar não menos atribulado – e levará Jacinto a trocar a Cidade pelas Serras.
Era um velho sonho: “Cyrano de Bergerac foi o inventor do fonografo no século XVI”, titulava O Século Ilustrado (Lisboa, n.º 148, 2-XI-1940: 3), exagerado. Thomas Edison, sim, inventará, em 1877, o fonógrafo de cilindro, ou graphophone, termo este que até os melhores dicionários, preguiçosos, datam somente de 1909. Luís Cangueiro lembra o precedente do engenheiro francês Charles Cros e estabelece dados curiosos sobre a polémica entre os adeptos de Léon Scott – o primeiro a gravar a voz humana, em 1860, num fonautógrafo – e Edison – «o primeiro a reproduzi-la» (p. 12), 17 anos depois. As vibrações produzidas por estilete num cilindro eram amplificadas por corneta; substituído o cilindro pelo disco de 78 rotações, no virar do século, o sonoro industrializa-se; The Gramophone Company e a Deutsche Gramophon são de 1898; a Victor Talking Machine, americana, de 1901. Enrico Caruso grava em 1902 e, com outra outra gravação operática de 1904, em Milão, vende um milhão de discos.
Peço uns segundos mais para o laboratório do também poeta Charles Cros, do grupo de Verlaine e Rimbaud. Em 1867, projectou um telégrafo eléctrico automático e um «processo de registo e de reprodução das cores, formas e movimentos», continuando a preocupar-se com a fotografia a cores e a invenção de um cromómetro, que medisse a coloração dos objectos. Meses antes de Edison, em 1877, descreve aparelho capaz de registar e reproduzir sons, que designa por paléophone.
No caso português, lembra Luís Cangueiro apresentações públicas em Lisboa e Coimbra, entre Outubro e Dezembro de 1879, bem como a paixão de D. Carlos pelo fonógrafo, que vira na Exposição Universal parisiense de 1889, dotando o iate oferecido à rainha, em 1894, de um fonógrafo. Seu pai, D. Luís, fora já o primeiro rei a ligar-se telefonicamente, um pouco depois de muitos particulares. Imitando o teatrofone de Eça, o monarca, na Ajuda, ouviu a ópera Lauriana, do São Carlos, por telefone.
Desde Novembro de 1893, o Salão do Phonographo, na Avenida da Liberdade, convidava a audição de 25 minutos a troco de 200 réis; desde 1894, Porto, Viseu, Coimbra e Figueira da Foz redobravam esse êxito, em sessões públicas. Enfim, lembra ainda Cangueiro, essa «Maravilhosa invenção» já comparece no conto queirosiano “Civilização”. Mas pouco portugueses o teriam lido, pois saiu em Outubro de 1892 na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro. Conto desenvolvido em A Cidade e as Serras, só aqui o fonógrafo atinge a máxima representação. E menos leitores teve A Tribuna, de Lisboa, em 15-X-1899, com o soneto “Phonographo”, escrito em Macau, 1896, por Camilo Pessanha. 
Ora, a história entre nós pode recuar. Sempre atento a estas aventuras, Ramalho Ortigão será, talvez, o primeiro a tratar do fonógrafo, aquando de uma segunda visita a Paris. Veja-se o seu livro Notas de Viagem. Paris e a Exposição Universal (1878-1879), saído neste ano. Em Maio de 1879, a propósito de exposição portuguesa no Rio de Janeiro, critica n’As Farpas o nosso «regime industrial» (2007: 1550), e, entre inventos recentes, cita «Edison, o fonógrafo e, ultimamente ainda, o admirável teléfono electroquímico, no qual o som é mais intenso ao chegar ao aparelho receptor do que ao partir do aparelho transmissor» (p. 1551).
Em 25 anos, o fonógrafo substitui outros modelos e representações. Lembrarei uma personagem lengalengando no In Illo Tempore, editado em 1902, que leva Trindade Coelho a dizer: «Era um realejo! ¬ E digo um realejo, porque no tempo do Pedro ainda não havia o fonógrafo!» (Coelho, 1991: 206)
Sirvam estes breves subsídios para estabelecermos um quadro mental do que se entendia por progresso, aqui, em função de um objecto particular datado de 1877, embora o termo francês phonographe (‘aquele que transcreve a pronúncia das palavras’) seja de 1844.
‘Gramofone’, ou ‘fonógrafo para discos’, será um termo de 1901 – o vocábulo português é de 1923 –, e, sendo gramophone em francês e inglês, pode ser que o germano-americano Emile Berliner, que registou o termo, tenha procedido à inversão do inglês phonogram, ou ‘gravação de uma faixa de disco’. Inventado em 1887, o gramofone é comercialmente lançado em 1893. A Imprensa portuguesa do início do século XX publicita-o profusamente. Na literatura, Luís Cangueiro detecta um texto, “O País dos Gramofones”, em Aventuras de João Sem Medo, de José Gomes Ferreira. Datada de 1901 a primeira experiência radiofónica a grande distância, montada por Marconi, em breve se assistiria ao estancar de interesse pelo gramofone e sua portátil grafonola. Mas quantos não se lembram, ainda, de discos de 78 rotações?  
Aquando da edição de Instrumentos de Música Mecânica (duas tiragens, 2007), priorizando a sua notável colecção de caixas de música, Luís Cangueiro oferecia, já, colecção de postais com fonógrafos e gramofones, datando o mais antigo daqueles de França, 1879, com que abre este segundo volume. Foi um dos pioneiros, portanto. Outros provinham da Alemanha, Suíça, Estados Unidos, acrescendo cartazes humorísticos, franceses e ingleses. Essa amostra é, agora, para os mesmos países (com entrada de Itália e Rússia), muitíssimo acrescentada em exemplares – cronologizada em fonógrafo, grafofone, gramofone, grafonola, gramofone de viagem, gramofone de criança –, fazendo-nos desejar o Museu de Música Mecânica, no concelho de Palmela. Muitas peças são, além do mais, exemplos raros de mobiliário e sinalizam décadas de design. Os acessórios – dos cilindros e discos às agulhas, de iconografia variada à bibliografia – encerram esta notável colecção. 
Para surpresa minha, o professor do Liceu Nacional de Bragança e artista fotográfico que conheci em Outubro de 1972, sem abandonar o sentido do olhar, entregou-se decididamente ao prazer auditivo. Homem de gosto raro, detentor de uma colecção de mais de 600 peças, com que formou o primeiro Museu da Música Mecânica em Portugal, o qual vem historiar segmento importante da cultura material da Humanidade, Luís Cangueiro torna-se, assim, protagonista da nossa memória colectiva.

Bibliografia
Barbier, Frédéric; Lavenir, Catherine Bertho. 32009. Histoire des Médias. De Diderot à Internet. Paris: Armand Colin; Cangueiro, Luís. 2008. Fonógrafos e Gramofones. S. l.: Quinta do Rei – Lazer e Cultura; Coelho, Trindade. 1991. In Illo Tempore. Lisboa: Círculo de Leitores; Marshall McLuhan. 21977. Pour Comprendre les Médias. Paris: Mame / Seuil, 1977 [ed. americanas: 1964, 1976]; Ortigão, Ramalho. 2007. As Farpas Completas. Quinto volume. Ed. de Ernesto Rodrigues. Lisboa: Círculo de Leitores; Queirós, Eça de. S. d. A Cidade e as Serras. Porto: Lello & Irmão – Editores.
[Texto mais desenvolvido em Ernesto Rodrigues, Ensaios de Cultura. Lisboa: Editora Theya / Wook. pt. Ebook.]
 

Ernesto Rodrigues