Os tempos eram outros. Nos anos trinta aprendia-se Literatura Portuguesa no ensino industrial. São palavras de Saramago nos Cadernos de Lanzarote – Diário III. Frequentador da biblioteca da escola Afonso Domingues, em Xabregas pelos seus 16, 17 anos tomou contacto com Ricardo Reis. Vale a pena recordar o que em 11 de Janeiro de 1995 afirmou a propósito das suas incursões pela Biblioteca. Encontrara a revista Athena dentro de um livro encadernado. Aí viu pela primeira vez as Odes de Ricardo Reis. Acreditara que existia ou existiria um poeta que se chama Ricardo Reis, que ao mesmo o fascinara e assustara, mas foi no princípio dos anos 40 que uns quantos versos de Ricardo Reis se lhe impuseram, como uma divisa, um ponto de honra, uma regra imperativa que iria ser seu dever, para cumprir e acatar.
Mas se Ricardo Reis é a segunda metade de um sintagma que funciona como título, o ano da morte é a outra escolha de Saramago. Questionamo-nos: porquê o ano da morte e não o ano do nascimento? É conhecida a afirmação proferida por Saramago que os seus livros têm uma marca política e ideológica bastante forte. Em entrevista concedida a Carlos Reis em 25 de Janeiro de 1997, publicada pela Caminho em 1998, sob o título Diálogos com Saramago, afirma o escritor: “Onde é que a literatura viveria, se pudesse viver fora da ideologia ou à margem dela? A Literatura pode viver até de uma forma conflituosa com a ideologia […] O que não pode é viver fora da ideologia”.
Se é certo que a ideologia está ligada à Literatura, só depois do 25 de Abril é possível conceber um texto como O Ano da Morte de Ricardo Reis, onde a ironia e a crítica se apresentam lado a lado para retratarem a governação de Salazar, e daí importa citar Saramago na entrevista a Baptista-Bastos publicada pela parceria Sociedade Portuguesa de Autores-Publicações Dom Quixote, em 1996, com o título José Saramago, Aproximação a Um Retrato, “Creio que nada ou quase nada daquilo que fiz, depois do 25 de Abril, podia ter sido feito antes”.
Levam-nos estes considerandos sustentados pela ideologia, pelo 25 de Abril e pela política, a uma afirmação que nos parece pertinente “1936, ano considerado como o da morte de Ricardo Reis, é o ano que reúne todos os ingredientes, configurando um painel de regras tendentes a cercear a liberdade; é o ano da consagração do salazarismo na sua plenitude, ano da afirmação de todas as transgressões, daí encontrarmos nesse tempo histórico, paratexto e pretexto, os elementos que enformam O Ano da Morte de Ricardo Reis, andaimes, alicerces e infra-estruturas que puseram de pé esta estrutura narrativa que se enfileira na obra saramaguiana.
Saramago é um homem empenhado politicamente. É um denunciador de causas políticas. Não lhe são indiferentes os problemas sociais. Quem escreve Levantado do Chão, em 1980 e Memorial do Convento, em 1982, tornando públicas questões laborais caídas no olvido, naturalmente que não vai optar de forma ingénua pelo Ano da Morte de Ricardo Reis. Era a ditadura salazarista em plena formação a dar os primeiros passos. Da escrita do texto, aproveitámos e vimos “vivo” um Ricardo Reis ficcionado como se fosse um de nós e lembrámo-nos que a PVDE/PIDE também existiu.
É o título um elemento premonitório de um texto que se abre à nossa frente e nos quer introduzir na vivência heteronímica de Fernando Pessoa. Ricardo Reis é um elemento de ficção legitimado e dado ao mundo por Fernando Pessoa em carta escrita a Adolfo Casais Monteiro, em 13 de Janeiro de 1935.
Viveu dentro de Saramago muitos anos. Sabemo-lo “nascido” em 1887, médico de profissão, residente no Brasil desde 1919, poeta, criador de Odes.
Saramago, empenhado no processo político, leitor de todos os quadrantes e observador tenaz, está atento ao que se passa em seu redor. Romancista do jornalismo herdado, conhecido em tempos de estro serôdio, dá à luz os seus romances mais conhecidos por volta dos anos oitenta, depois de ter passado pela poesia e pelas crónicas políticas publicadas antes do 25 de Abril, quando a censura campeava. Em plena ditadura, Saramago vai-se furtando aos olhares inquisitoriais, em artigos de opinião, em prosa, crónica e contos, mostrando a sua verve de homem político, o mesmo se passando na poesia, onde o seu mérito, contudo, não atingiu o esplendor do romance.
Escritor da inquietação, da insatisfação e da rebeldia, faz de Portugal o seu objecto de cultura, conferindo-lhe uma dimensão ética e épica, através de uma “arqueologia” onde são postos a nu acontecimentos que, produzindo o presente, exorcizam o passado, tornando o tempo coevo, conforme afirma, “Só o tempo passado é que é tempo reconhecível – o tempo que vem, porque vai, não se detém, não fica presente […] Desse tempo que assim se vai acumulando é que somos o presente infalível, não de um inapreensível presente”.
Sabemos que uma das justificações encontradas por Saramago para a escrita de O Ano da Morte de Ricardo Reis foi o “desafio” imposto pelo verso “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo”, escrito por Ricardo Reis em 19 de Junho de 1914.
Não sendo Saramago um homem acomodado, as suas leituras nas várias bibliotecas que frequenta em Lisboa, não fazem dele um ser instalado e passivo. Sábio seria, antes, para quem o mundo é motivação, convocação, correcção de assimetrias através da assunção de compromissas resultantes de uma tomada de consciência despertada por um espírito crítico que lhe advém da correlação entre o conquistar-se e o conquistar o mundo segundo paradigmas que vão sendo instaurados pela palavra que não é exclusivamente pensamento.
Com frequência o romance convive com o espaço e o tempo, e é nesta convivência que se move O Ano da Morte de Ricardo Reis. Sabemos que a acção central se desenrola em Lisboa, uma vez Ricardo Reis aí desembarcado. Desembarca no cais de Alcântara. Viajou no Highland Brigade, vapor inglês da Mala Real. Recebera um telegrama de Álvaro de Campos anunciando a morte de Fernando Pessoa, sentira que era um dever regressar. Não sabe se fica para sempre em Portugal ou se regressa ao Brasil.
Ficou instalado no Hotel Bragança, no segundo andar de onde pode ver o rio, no quarto 201, que tinha ficado livre naquela manhã. Ficou entre nós e deambulou pela cidade. Lisboa é porta aberta para os que de Espanha procuram paz e sossego “por isso os Estoris albergam o que em linguagem de crónica mundana se diz ser uma selecta colónia espanhola, afinal pode bem acontecer que lá estejam, em veraneio, aqueles e outros duques e condes”. Para benefício destes, o Rádio Clube Português passou a ter uma locutora espanhola que lê as notícias dos avanços nacionalistas na língua de Cervantes.
Saramago pensou preencher o espaço deixado em aberto por Fernando Pessoa, como se fosse preciso dar vida a Ricardo Reis que permanece na capital até Agosto de 1936. Como se estivesse a fazer a exumação de um passado mal conhecido que era obrigatório desvendar e denunciar com vista a esclarecer o presente para que se entenda o passado, numa ótica de efemeridade e de transitoriedade, porque salvando-o através da reescrita, há uma hipótese de correcção, com vista a criar homens e mulheres mais capazes, como se o mundo pudesse vir a ser melhor, através da adição de pessoas mais sólidas.
Sendo um texto, um movimento de reorganização que produz destruindo a partir de um extra-texto, ou que de outra forma tende a arrumar o caos e que, neste caso, sendo o social, é também a vida de Ricardo Reis que se vai transformando. Para a sua construção, serviu-se José Saramago de jornais da época, como por exemplo, O Século, investigado durante dois meses, na Biblioteca Nacional. Oito meses ocuparam o autor para a feitura da sua obra.
Neste painel de espaços e personagens imaginado a partir de um outro já existente, rebuscado no verdadeiro ou imaginado, com vista a criar o verosímil ou inverosímil, onde o autor e o leitor dialogam, numa troca de significantes e significados, com vista a dinamizar uma acção em que o facto do contacto assume foros de autenticidade. Uma retrospectiva de Portugal, um postal ilustrado de Lisboa com as cores da simpatia e da vivência dos bairros menos afortunados por onde Saramago viveu, “Aqui não é sequer a Lisboa toda, muito menos o país, sabemos nós lá o que se passa no país, Aqui é só estas trinta ruas entre o Cais do Sodré e S. Pedro de Alcântara, entre o Rossio e o Calhariz, como uma cidade interior cercada de muros invisíveis que a protegem de um invisível sítio, vivendo conjuntos os sitiados e os sitiantes”.
Lisboa é o macro-espaço onde tudo se passa, para além de Fátima aonde se deslocou, numa tentativa para encontrar Marcenda:
Ricardo Reis partiu para Fátima. O comboio saía do Rossio às cinco horas e cinquenta e cinco minutos, e meia hora antes de a composição entrar na linha já o cais estava apinhado de gente.
Ricardo Reis está aqui no livro. Dinâmico, parece que vivo, dialogante, médico ainda, de trabalho precário, quarenta e oito anos, natural do Porto, solteiro,” última residência, Rio de Janeiro, Brasil, donde procede, a recordar-nos tempos de Polícia política, de agentes a cheirar a cebola, provocando um sorriso irónico ao leitor que ainda se lembra da ditadura e da matança de Badajoz. Como se fosse um de nós, autónomo e senhor de si”, “é aqui que irá viver não sabe por quantos dias, talvez venha a alugar casa e instalar consultório, talvez regresse ao Brasil”. Veio para falar com Fernando Pessoa. O cemitério dos Prazeres é já ali, não muito longe do Hotel Bragança. Lá no jazigo 4371 está Fernando Pessoa. Sai de quando em vez e dialoga com Ricardo Reis. Rua do Alecrim, Chiado, Rua Garrett, Rossio, Calçada da Estrela, Largo de São Roque, Príncipe Real e Estátua de Eça de Queirós são referentes que nos remetem para a realidade, dissipando a ficção.
Dezanove capítulos, não numerados, de 415 páginas, de vida de Ricardo Reis, médico de profissão, de guerra, de Hitler, de Salazar, de silêncio, de medo, de presos políticos, de palavras interditas, de manifestações de apoio contra o comunismo.
Sem dúvida os sindicatos nacionais repelem com energia o comunismo, sem dúvida os trabalhadores nacionais(…) os sindicatos nacionais pedem a Salazar, em suma grandes remédios para grandes males, os sindicatos nacionais reconhecem(…) a iniciativa privada e a apropriação individual dos bens, dentro dos limites da justiça social.
Há, também, os nomes que se recordam e cujas raízes ainda perduram: Luís Pinto Coelho, Fernando Homem Cristo, António Castro Fernandes, Ricardo Durão, Nobre Guedes, Jorge Botelho Moniz, de bancários de fita azul com a Cruz de Cristo no braço e as iniciais SNB.
Como se fosse um repórter, alguém que sentimos presente, o narrador vai-nos dando conta do quotidiano, sem esquecer a localização espacial, “Aqui o mar acaba e a terra principia”, pintando-a em tons de meteorologia. Há o rio e a água em abundância. Chove muito. E há Camões, Os Lusíadas, onde todos nós vamos dar.
Todos os caminhos portugueses vão dar a Camões, de cada vez mudado consoante os olhos que o vêem, em vida sua braços às armas feito e mente às musas dado, agora de espada na bainha, cerrado o livro, os olhos cegos, ambos, tanto lhos ficam os pombos como os olhares indiferentes de quem passa.
Narrador omnisciente, que tudo sabe, com prerrogativas ilimitadas, sabendo o que está a acontecer, informa o que se passou, ao mesmo tempo que transmite uma visão do futuro, “Quando amanhã cedo o Highland Brigade sair a barra, que ao menos haja um pouco de sol e de céu descoberto”.
Não participando na acção, o narrador está em condições privilegiadas para observar e contar. Digamos que se trata, segundo Genette, de um narrador heterodiegético, com uma capacidade de contar que não é posta em causa, dada a autoridade que lhe advém do seu saber, embora não seja alheio a cenários ideológicos que se vão manifestando através das suas impressões, fruto da sua subjetividade.
Se é verdade que Ricardo Reis é transportado para a vida, suscitado pelas Odes descobertas na revista Athena, outras são as personagens revividas no Ano da Morte de Ricardo Reis. O hotel Bragança é o local de todos os encontros. Espanhóis que em Portugal procuram a paz e a serenidade que a guerra do seu país não proporciona. Marcenda, nome gerúndio, filha do Dr. Sampaio, notário de Coimbra, que é maneta, “irmã” física de Baltazar, do Memorial do Convento. Conheceram-se de soslaio na sala de jantar do hotel Bragança, “foi ela quem daí a pouco olhou, por cima da manga do criado que a servia, no rosto pálido perpassou uma brisa, um levíssimo rubor que era apenas sinal de reencontro”. Através do olhar mantêm uma relação que as regras da época não permitem ir muito longe. Carteiam-se e são parcos em contactos físicos. Casamento que é pedido e recusado. Nunca seriam felizes. Marcenda não o esquece. Uma ida a Fátima e um encontro fracassado e de fracasso é também o seu primeiro encontro com Lídia, figura nuclear nas Odes de Ricardo Reis. Transportada para a obra de Saramago, Lídia é filha de pai incógnito, empregada de quartos de hotel e de casas a dias, subalterna de Ricardo Reis, de parto adiado, de olhos vermelhos e inchados, grávida de médico, irmã de Daniel, marinheiro do Afonso de Albuquerque, também ele vítima da ditadura salazarista.
Não tendo nenhum assunto a tratar em Lisboa, Ricardo Reis decide ir ao cemitério dos Prazeres visitar Fernando Pessoa que tinha morrido e que se encontra no jazigo quatro mil trezentos e setenta e um. Depois de desencontros, a vinda a Lisboa acaba por resultar. Ricardo Reis que se confessa monárquico, sem rei, tivera o seu primeiro encontro com o seu “criador” graças ao poder vivificador do demiúrgico narrador. O verosímil acabara com as fronteiras entre a vida e a morte. A partir daqui tudo é possível, mas só durante oito meses pode circular à vontade, tempo suficiente para o total olvido.
Passaram oito meses e onze encontros. A noite estava quente, naquele final do mês de Agosto. O prazo estipulado por Fernando Pessoa estava a terminar. Só podiam estar juntos oito meses. Era ali, em Lisboa, “onde o mar se acabou e a terra espera”.
E a leitura/escrita poderia continuar…
João Cabrita