Falando de… Consolação às tribulações de Israel, de Samuel Usque

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Há leituras que decorrem de acordo com a oportunidade. Acontecimentos, notícias e celebrações conduzem-nos, muitas vezes, aos livros numa tentativa de consolidação de informações soltas chegadas até nós.
Falar de judeus tem sido uma constante neste ano, a aproximar-se do seu fim.
Samuel Usque foi uma leitura adiada por muito tempo. Edições sobre a obra do escritor escasseiam no mercado, nomeadamente nos alfarrabistas. Socorremo-nos de uma edição da Fundação Calouste Gulbenkian, de 1985, em dois volumes, e de outra em três volumes acopulados, impressos na casa de Francisco Amado, em Coimbra, de 6 de Janeiro de 1906, a 30 de Outubro de 1907.
Pouco se sabe de Samuel Usque. De ascendentes judeus de origem espanhola, terá nascido em Lisboa, depois de 1492, data da expulsão dos judeus de Castela, pelos reis católicos, Fernando e Isabel. Segundo Mendes dos Remédios, que prefacia e revê a edição de França Amado, a sua existência deve ter passado, como a de muitos judeus instruídos nos finais do século XV, em Portugal, entre o ensino e o estudo.
Com primeira edição em Ferrara, em caracteres góticos, na tipografia do irmão Abraão Usque em 1553, terá uma segunda edição em Amsterdam em 1599, em caracteres redondos. O livro inicia-se com uma dedicatória à Ilustríssima Senhora Dona Gracia Nasci, a quem deseja por obras, escritos e feitos, satisfazer e mostrar-se em parte, grato das muitas mercês que da sua larga mão tem recebido, “como acostumada de fazer mercês benignamente”.
No Prólogo, o autor justifica a razão de ter escrito o livro em Português, porque sendo o seu principal intento falar com Portugueses e representando a memória deste seu desterro, era desconveniente (sic) fugir da língua em que mamou e buscar outra para falar aos seus naturais.
Constituído por três diálogos, tendo como interlocutores três pastores, segundo a edição da Gulbenkian, transformados em interlocutores na edição de França Amado, constroem um “Diálogo pastoril sobre coisas da sagrada escritura”. São eles, Jacob, com o anagrama de Yacob, simbolizando, segundo o autor, o povo judeu que pela sua boca se lamenta dos males que através dos tempos tem sofrido. Nahum e Zacharias, com os nomes de Numeo e Zicareo, procuram consolar Yacob representando-lhe o destino providencial do povo hebreu e sua missão na terra até à consecução da felicidade que Deus lhe tem reservado, segundo Mendes dos Remédios.
O diálogo primeiro, à semelhança do que acontece com a Menina e Moça, publicado, também, em Ferrara, em 1554, apresenta-se num quadro bucólico, de uma vida apaziguada em contacto com a natureza, abençoada por Deus. Actividades venatórias porão em causa este clima edénico, provocando a degradação do ambiente, pretexto para as tribulações que conduzirão ao lamento de Yacob e à dilatação do espaço a territórios onde os filhos de Israel se instalarão – Ásia, África e Europa, sendo esta o “inferno na terra”.
Tribulações, também, devidas ao comportamento do povo israelita, conduzirão à guerra, à idolatria, ao homicídio, ao cativeiro. A implantação da Realeza, com o rei a querer assemelhar-se a outras gentes, que em lugar de se dedicarem ao seu povo, são causadores de guerra, resultado da acção punitiva de Deus.
Com a vitória de Nabucodonosor e a consequente queda e cativeiro de Israel, inicia-se um período atribulado que, depois de liberto, e mercê de uma transgressão sistemática, conduz o povo de Israel a tempos de sofrimento e de dispersão.
Desvios à conduta moral e religiosa, agravados com a diáspora, são lições a reter no presente para correcção de uma prática que não se deve repetir. Citando Sócrates no Prólogo “Aos senhores do desterro de Portugal” a quem apoda de espelho e norte por onde se guiaram não somente os atenienses e inventores de toda a doutrina, mas o resto da gentilidade possuidora de todas as boas artes, afirma Samuel Usque:
       Vendo-se as pessoas em fadigas cotejassem os males que atrás ficavam com os
   presentes e facilmente lhe achariam consolação.
Confrontando o passado com o presente, desvalorizando o momento actual, não esquece as vicissitudes por que passou o povo judeu nos diferentes países, como Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Flandres e Portugal, onde não é esquecida a matança de 1506. A natureza é o lugar conveniente para chorar seus males e subir seus gemidos ao derradeiro céu. São seus interlocutores as árvores, as mansas águas, dispostas a ouvir, a quem pede que compartilhem as dores das suas lástimas. Numeo e Zicareo tentam animar Yacob, convidando-o a ir com eles para junto de um ribeiro onde lavará seus olhos, tão húmidos de chorar.
O diálogo terceiro elenca o conjunto de países onde os judeus foram vítimas de desventuras, depois de terem sido sacrificados pelos Romanos, até à sua entrada em Portugal em 1492 e acolhidos por D. João II, sendo cativos e deportados para a Ilha de São Tomé, onde os meninos foram comidos por lagartos. Depois foi D. Manuel quem mandou apregoar que os judeus se fizessem cristãos ou saíssem de Portugal num curto prazo. D. João III e a Inquisição não deixam de ser lembrados nas tribulações dos judeus, até à sua expulsão em 1531 para Espanha, Inglaterra e França, onde são mal recebidos. Numeo e Zicareo irão apontar a consolação que restará ao povo de Israel, depois de todas as tribulações por que passaram.
Antes da última fala da personagem Ycabo, o livro termina prevendo com satisfação o fim próximo das tribulações de Israel, clamando por vingança contra os seus inimigos, apelando à fé e à esperança.
Escrito por um judeu, o livro tem um carácter apologético, defendendo, naturalmente, uma causa por um indivíduo que na diáspora estava longe de sofrer quaisquer represálias, não receando apelidar os Ingleses , de maliciosos “quasi bárbaros Portugueses”.
A extrema raridade do livro deve-se ao facto de ter pertencido ao Index proibitório e principalmente expurgatório, de Madrid, de 1640. Encontra-se em Portugal um exemplar na Biblioteca do Paço Ducal de Vila Viçosa, que pertenceu a D. Manuel II, em excelente estado de conservação, numa encadernação antiga de valor artístico não muito elevado, segundo escreveu o Professor Pina Martins, existindo ainda uma segunda edição na Biblioteca Municipal de Viseu. Confrontando o texto de Mendes dos Remédios com o da edição da Fundação Calouste Gulbenkian, que apresenta a edição fac-similada da primeira publicação, é possível verificar que faltam na de Mendes dos Remédios os sinais calderónicos que assinalam os capítulos e parágrafos. Para quem não possui grande destreza em paleografia, é mais fácil a leitura do texto publicado no princípio do século passado, trabalhado por Mendes dos Remédios.
Tal como o livro que tentámos descrever, é possível afirmar que os manuscritos copiados e decorados em Lisboa, assim como os incunábulos editados na mesma cidade,  em Faro e em Leiria, na segunda metade do século XV, a partir de 1487, são na sua quase totalidade dedicados a temas religiosos. Alguns redigidos em hebraico, tiveram grande importância na formação de muitos judeus portugueses.
Livro avançado, em relação ao seu tempo, escrito por um homem fustigado por uma perseguição que vai lamentando, mas cujo fim augura.
Um hino à esperança, num mundo onde as injustiças tinham lugar. O tempo presente marcado por erros do passado. Um exame de consciência na procura da correcção e da remissão…

Não foi adoptado o Novo Acordo Ortográfico        
 

João Cabrita