Estreitos laços

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Faz por agora dez anos o primeiro-ministro de então dava uma entrevista televisiva a propósito da manifestação de professores ocorrida dias antes, considerada a maior de sempre. À medida que discorria, o poder argumentativo e persuasivo era magistral, de tal forma que lá para o fim os espetadores se viam plenamente convictos de que a classe era do piorio, uma cambada de favorecidos mal-habituados, agarrados como carrapatas a ilegítimas mordomias, precisamente a mensagem que se queria propagar. Para quem possuía algum conhecimento dos assuntos o caso era outro. E se preocupava o arremesso de uma cadeia de fake news (para usar um empréstimo em voga) proferidas com convicção inabalável, e a limpeza com que os leigos eram assim manipulados, então constatar toda aquela impassível impostura chefiando o governo da nação já era aflitivo.
Infelizmente, o que se veio a saber na década que decorreu confirmou essas intuições. O fenómeno como um todo é passível de levantar tantas questões quantas tem levantado, mas algumas que também parecem relevantes são espinhosas, razão pela qual se foge delas como o diabo da cruz. A primeira podia passar por questionar a legitimidade de muitas decisões durante aqueles seis anos de gestão. Considerando que a personagem não caiu do céu, que fez um trajeto tendo por baixo toda uma pirâmide de suporte, outra, porventura mais óbvia, consistiria em saber como foi possível tal estrutura tê-lo conduzido ao cargo e facultado apoio enquanto lá esteve. Mas esperar respostas a isto seria puro lirismo, tanto como acreditar na emergência de algo parecido com uma autocrítica individual ou coletiva depois de a bomba ter estourado, apesar de o país ter sido arrastado para a falência no meio de inúmeros indícios de ligeireza. Pelo contrário (e honra seja feita às exceções da praxe, caso de Ana Gomes), ante a desgraça tudo o que até aí tinha sido uma máquina pesporrente, à imagem do próprio líder, revelou evidentes sintomas de fuga e negação.
Acho que ser de um partido é já por si altamente empobrecedor. A riqueza e beleza da realidade (e o que torna aliciante descobrir-lhe os segredos) residem em ela ser indivisa, apesar de mutável e multifacetada. Ora os partidos o que fazem é vê-la como estando partida, estilhaçada (daí chamarem-se partidos). E depois de assim a terem escacado, como se não bastasse, optarem voluntariamente alguns partidários por ver o mundo através de um desses cacos é como condenar o espírito a pena de prisão, é estabelecer laços que lhes sequestram o pensamento. Daí a piada que a autocensura às vezes tem, o contorcionismo a que muitos se obrigam para não pisar o risco que alguém lhes traçou. Se a essa postura juntarmos conveniências individuais, está aberto caminho para perceber que muitas vezes a máscara carnavalesca não passa de um símbolo daquela que usamos nos restantes trezentos e sessenta e dois dias do ano.
Não que a tendenciosidade seja inédita na nossa espécie, longe disso, mas no caso em apreço, tendo em conta que o fingimento de muitos se juntou à quase geral pusilanimidade, houve um evidente sabor de farsa. Portanto, assistir em concreto ao mutismo salamurdo de alguns militantes ou (no caso de falarem) vê-los a pretender fazer-nos acreditar que alguém acusado de mais de trinta crimes pudesse estar inocente, até pode cair na alçada do risível. E mesmo ouvir ex-ministros e outros devotos, convertidos agora em comentadores, atidos a milhentas ninharias mas ignorando enfiados a única coisa que se esperaria que comentassem (como que a assobiar para o ar a ver se não se dava conta) não é nada que as fraquezas humanas não expliquem, não obstante causar acentuado desconforto. Ainda assim há incómodos maiores. Quem não sentiu pena ao ver Mário Soares, um dos pais da democracia, atirado de forma desrespeitosa a membros de um órgão de soberania, e um dos seus pilares?
Agora o que feriu como punhal trespassando o coração, e mostrou como até os impolutos se podem ver enredados nas malhas do camaradismo mecânico, foi ver gaguejar um homem da envergadura intelectual e moral de Eduardo Lourenço, figura tutelar do partido, quando um jornalista lhe fez uma pergunta embaraçosa sobre aquela romanesca figura. Isso é que foi confrangedor, embora revele também o valor imenso da independência mental.

Eduardo Pires