À espera de Godot

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No dia 12 de Fevereiro, mês quente com o Mafarrico no ventre, ao dar início às operações de sair do leito procurei o registador do nosso quotidiano a fim de ver as horas, recebendo um clarão branco, baço em trevas cintilantes a desmentirem o significado/significante de negritude rememorada na Semana Santa. Aturdido qual cego guiado por ladino moço de cego plasmado na literatura picaresca, seriamente preocupado ante a malignidade da mazela recordei-me do grotesco absurdo da genial peça teatral “À Espera de Godot”, concebida pelo sardento Samuel Beckett a interrogar- nos acerca dos mistérios da vida e das nossas mesquinhas existências. E, interroguei-me pensando nos cegos meus amigos ou conhecidos cujas obras me proporcionaram vivo gasalho cultural a todo o tempo em todos os transes e nos enormes parágrafos jubilosos do Tempo Para Amar, Tempo Para Morrer, parafraseando Eric Maria Remarque porque a tragédia ucraniana é a prova provada da besta irracional a passear-se no Jardim não das Delícias, sim das Monstruosidades Vulgares tão bem delineadas em metáforas reais pelo hoje esquecido José Régio. Imaginei João de Deus de cataplana à sua frente a atirar amêijoas cristãs transformadas em cegos de enorme talento a engendrar ingredientes literários para a eternidade levou-me a recordar Homero personagem fabulosa, Jorge Luís Borges que patrioteiros moncorferrences pretenderam fazê-lo descente da vila do «banido» Campos Monteiro, mais perto de nós o autor d0 livro Olho de Vidro e o Cego de Landim, o Castilho agricultor e Saramago ortodoxo estalinista a aplaudir a posição dos camaradas a defenderem cegamente o camarada Putin. O fim-de-semana no vácuo, lento, quanto a mula do Má-Cara, fez- -me listar as muitas dezenas de mulheres e homens que conheci e conheço de Bragança as quais resumo numa só o bondoso Cónego protector, mestre, conselheiro de gerações de escuteiro. Alguém se recorda do seu nome? Procurem ao Fernando Pires, ele sabe o nome. Também elenquei os biltres a cruzarem- -se comigo desde adolescência até aos dias de chumbo de agora, um de apelido Madureira a quem dei a mão a fim de obter emprego bem remunerado logo que teve ensejo a ferrou com a dentuça sem clorofila, meneando a cabeleira ensebada. O filósofo Orlando Vitorino meu Mestre dos dias bons e avinagrados exclamava: «a ingratidão é pulsão corriqueira e dos imbecis!» Na segunda-feira, dia 14, consegui ser observado pelo emérito (é mesmo emérito, não de pacotilha como muitos) oftalmologista brigantino António Sampaio, tendo ele diagnosticado uma distorção na vista esquerda, marcando uma intervenção cirúrgica para a próxima quinta-feira. Havia a necessidade de colocar uma nova lente no local anteriormente morada de uma catarata. A inquietação irrompeu qual foguete a matar pessoas indefesas em Kiev. O lapidador de lentes Spinoza , ortodoxo pensador judeu, activo contraditor do também ortodoxo e bragançano Oróbio de Castro, agitou as páginas dos seus escritos para além da finitude existencial a sobrepor-se a Godot. No domingo gordo telefonou- -me o estimadíssimo Francisco Cepeda, queria saber novas e mandados de mim. Estava a degustar almoço opíparo a acompanhar o nosso comum amigo Alberto, Alberto Fernandes, contei-lhe as agruras, bem menos pungentes que o Chico ajudou a suavizar aquando da minha estada no Batalhão de Caçadores 10, onde por sua iniciativa fui escrivão na sala de justiça. A operação correu bem, a convalescença flui ao ritmo lento das águas minguadas do Tejo meu vizinho. Estou a retomar a escrita corrida de caracol. É a vida!

Armando Fernandes