Os portugueses têm boas razões para andar contentes. Embriagados de futebol, como no tempo da outra senhora e inebriados de liberdade, felizmente, agora que é tempo de outros figurões, não os perturbam os problemas do presente e muito menos os que virão a seguir. Atente-se na Justiça, por exemplo, em que são por demais evidentes as movimentações, escandalosamente imorais, de altos dignatários políticos, para salvar da prisão, destacados amigos e correligionários. Corre-se mesmo o risco de as instituições democráticas deixarem de funcionar cabalmente, se é que algum dia funcionaram bem. Sobretudo agora, porque o Presidente da República, que é o principal garante do seu regular funcionamento, persiste em intervir negativamente na governação em particular e na vida política em geral, ao arrepio das suas atribuições constitucionais, quando deveria, isso sim, ser exemplo e promotor de verdade, dignidade e imparcialidade. Para a História vão ficar, por certo, as suas desmioladas análises caracterológicas de colegas políticos, personalidades relevantes do Estado democrático: o anterior primeiro-ministro, António Costa, Luís Montenegro, o actual, e Lucília Gago, Procuradora-Geral da República. Grave acima de tudo, todavia, foi declarar perante correspondentes estrangeiros, que Portugal tem “de pagar os custos” do seu colonialismo. “Há acções que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isto”. - pergunta e responde. Assim mesmo. “Tout court”. É caso para sermos nós a nos questionarmos se alguém sabe o que se passa na mente do professor Marcelo Rebelo de Sousa, que vulgarmente é tachada de brilhante. Será que algo lhe pesa na consciência? Tal até será compreensível dado que viveu que nem nababo, nas luxuosas estâncias da administração colonial, na então Lourenço Marques, enquanto muitos cantineiros e outros, sofriam as agruras da selva. Não deveria a democrática Procuradoria Geral da República ter já aberto um processo sobre esta matéria, envolvendo designadamente a administração colonial? A História lusa é longa e intensa, como se sabe. O moderno colonialismo português começou cedo, no século XV, com os Descobrimentos que uns tantos persistem em exorcizar, quando Portugal se lançou na sublime aventura de procurar novas rotas comerciais e estabelecer relações com civilizações além da Europa. História que está recheada de reis e rainhas, de heróis e de santos. E de pecadores quanto baste. Negreiros e esclavagistas designadamente, o que desde sempre foi sobejamente conhecido. Se os contemporâneos de tais criminosos os não sentenciaram, em obediência ao códigos penais e morais da época, disso já tratou, inexoravelmente, o juízo histórico. Não tem sentido, portanto, que sejam os tribunais do presente a fazê-lo, séculos depois, atirando culpas e custos para inocentes. Acresce que três questões fundamentais se levantam em qualquer acto passional, negócio comercial ou político, quando algum tipo de pagamento é devido: saber desde quando, porque matérias e de que forma tal ajuste de contas deverá ser feito. Será, no caso vertente, desde que Bartolomeu Dias dobrou o Cabo das Tormentas? Ou desde o dia em que Fernão Mendes Pinto introduziu as primeiras armas de fogo no Japão? Porque o padre António Vieira, entre outros, andou a fazer maldades lá por terras brasileiras e não a defender, incansavelmente, os direitos dos povos indígenas, a combater a sua exploração e escravização e fazendo a sua evangelização, como propalam os panegíricos medievais? Ou porque Francisco Xavier, sem tal intenção ter, promoveu a violência e a guerra em terras indianas, ao espalhar doutrinas estranhas à filosofia oriental? Ou porque os portugueses criaram, talvez abusivamente, em 1842, a “Escola Médico-Cirúrgica de Nova Goa”, a primeira do Oriente? Ou porque Portugal traçou fronteiras, garantiu unidade territorial e política e dotou as suas colónias de uma língua internacional unificadora? Ou porque o ditador Salazar em resposta à chacina de milhares de inocentes cidadãos portugueses, brancos e negros, operada pela UPA em Março de 1961, decidiu não meter o rabo entre as pernas e desencadear uma longa guerra, no decurso da qual as martirizadas colónias registaram notável progresso, que viria a ser, posteriormente, tragicamente postergado? Deverá tal pagamento ser feito em numerário, por transferência bancária para as contas dos novos machuchos africanos, ou em espécie, levando o Palácio de Mafra para o Brasil ou o de Belém, por exemplo, para Bissau, o que até não será má ideia se o inquilino for dentro? Perante tudo isto e o mais que fica por dizer, apenas um conselho se dá: demita-se, senhor presidente, enquanto pode. Mas primeiro peça desculpa às vítimas, o que só a si compete, sem esquecer aqueles que o elegeram.