Ao ver através da janela televisiva as longas e demoradas filas de mulheres e homens do credo benfiquista (também sou crente) a esperarem durante horas a sua vez de votarem em tempos de pandemia, de distanciamento, de máscara sobre a boca e o nariz, recordei-me do Tratado de Paixões da Alma do filósofo mais conhecido por Penso, logo existo, ou seja René Descartes. O fenómeno da atracção humana pelo jogo tem motivado a atenção de eminentes figuras das áreas da cultura, da filosofia, da antropologia, da sociologia e disciplinas artísticas. Desde Johan Huizinga a Roger Callois, passando por Georges Simmel, Norbert Elias, Desmond Morris e Lévi- -Strauss, cito os que li atentamente, legaram-nos elementos suficientes para reflectirmos acerca desta paixão não raras vezes a resvalar para o grau zero da irracionalidade, do desprezo por si próprio, da queda na cloaca de todo o género de indignidades. Aquela multidão de votantes receberam incómodos que se lhe fossem impostos soltariam gritos, imprecações e queixas ululantes, a receberem a frialdade da noite, expostos ao contágio de um vírus virulento evidenciando enorme apetite por humanos de grossa e perigosa idade é vibrante exemplo de que as paixões tal como os gostos segundo os Romanos não se discutem. Um apressado regresso a Bragança dos anos sessenta do século passado faz emergir um nutrido conjunto de apaixonados pelos seus clubes, os ora chamados tifosi de gritos, insultos e algumas cenas de pugilato, porém longe do hooliganismo que personifico em A Laranja Mecânica. O benfiquista Sr. Alberto Rodrigues da Sapataria da Moda ostentava na lapela do casaco o emblema ornado de pedras preciosas e o cartão de sócio, não mostrava exuberâncias durante ou após os jogos, ao invés os também sócios. O Sr. Álvaro do Flórida e irmão Manuel inflamavam-se logo que o árbitro silvava a descontento, enquanto o Sr. Augusto Poças (Pincelas) ficava furibundo, o benquisto Augusto deslocou-se a Berna, aparecendo triunfante ao lado do goleador Águas provocando emoções gozosas e invejas na cidade. Sim, noutro patamar, o dos apaixonados sem a insígnia de sócio, caso do Fígaro Carlos Gardel ou o Sr. Cândido Parente o extravasar de paixão pelo clube que, durante muitos anos prescindiu de jogadores estrangeiros pois abastecia-se nas colónias, era total e, todos sofriam quais mártires modernos na altura das derrotas. Então e os «doentes» de outros clubes? Existiam em bom números – calmos, acelerados, furiosos e fanáticos –, recordo a bonomia do portista Sr. Queirós, as birras do também portista Sr. Roque da Silva Moura, os dois faziam reluzir os custosos emblemas, as imprecações do cauteleiro Sr. Guedes, também dos andrades, no entanto, a perder rotundamente no confronto com o sportinguista Toilas que merece a Senhoria mas deu-me vontade de o apelidar sem ela porque assim lhe chamávamos. O pasteleiro Sr. Ribeiro respingava em língua de fogo, de dragão, a torto e a direito ao receber um dichote, mesmo que enrolado num bolo de arroz. Outros nomes ficam no tinteiro da memória porque o espaço não estica, dos mais novos trago à colação o meu estimado amigo Adalberto Castro, adepto do mítico animal dragão, o qual sempre aceitou as minhas ironias, ironias de um benfiquista fiel leitor do trissemanário A Bola, filho de um incandescente que ia rezar nas igrejas pedindo benesses ao Altíssimo destinadas a concederem vitória ao Glorioso. Se as preces não surtiam efeito, salpicava-o, humuradamente, de pouco valerem as orações interesseiras. Não apreciava o comentário. Por influência do Ivo Pinho (águia d’ouro e outros águias douradas e prateados) durante algum tempo frequentei o Estádio da Luz, os dogmáticos eram muitos e vesgos, idêntica visão distorcida pulula no reino dos lagartos e parque dos animais criados pelo medo dos homens o breu do desconhecido. Agora, há indícios de regressarmos à época dos alumbrados, os misticismos derivados da pandemia, a sulcarem as redes sociais e as televisões procuram iluminarmos no emaranhado das trevas pandémicas, por isso o jogo rei, o futebol, que os ortodoxos marxistas e maoístas diziam ser uma das expressões da alienação do povo, sustenta o revigoramento da paixão pelo viver no coração de muitos milhões de pessoas confinadas a pensamentos turvos, tristes e trágicos. Daí a prova de vitalidade no dia e noite de 28 de Outubro. Nos últimos anos vou a Bragança em voo de pássaro, numa dessas viagens fui a uma casa de comeres chamada Copinhos. Trata-se de uma eclatante capela benfiquista à qual espero voltar quando a peste sucumbir. Não se esqueçam: usem máscara!