Cumprimentos

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Minha gente, como tendes passado? Essa saúde? As andorinhas já se instalaram em força? Este ano promete, oxalá cheguemos ao castanho sem nos andarmos a queixar da falta de água. E se, ao contrário do ano passado, nos pudesse trazer já uns belos punhados de cerejas cairia que nem ginjas. Viva a Primavera e toda a cor e renovação que ela nos traz. Viva a luz radiosa do sol que é uma coisa que deixa sempre os portugueses particularmente bem-dispostos e com vontade de procurar uma esplanada para matar a sede. E viva Abril por todas as coisas que nos tem permitido construir. Hoje dedico-me principalmente a esta última parte, a do viva Abril. O 25 de Abril é pouco mais do que uma efeméride e uma efeméride é uma data meio perdida no tempo como quando um primo afastado faz anos e nós às vezes lhe damos os parabéns, outras não, e a vida continua sem por isso mudar um centímetro sequer. Aquela cerimónia com a Assembleia cheia de cravos, uns eventos ou exposições meias despercebidas pelas bibliotecas do país, um ou outro post no facebook sem grande emoção, pouco mais. O pessoal conta aquela do se fosse hoje a revolução tinha começado numa qualquer rede social, depois uns faziam likes outros não, nas ruas montes de fotos com bonequinhos e orelhinhas de coelho… Vão faltando palavras e imaginação para assinalar a data. O episódio repete-se ano após ano e acaba por perder a piada. Salva-se o feriado e com sorte uma ponte pelo meio. Estava a ler um artigo sobre os filmes censurados antes do 25 de Abril e era do género “este não porque tem pornografia” (um beijo), este não porque “os portugueses não vão conseguir interpretar” (essa cambada de burros, os professores bem lhes carregam mas nem assim eles aprendem), este nem pensar porque “sugere um amor entre duas mulheres” e isso coloca “severamente em causa a moral de uma sociedade conservadora” (estamos aqui estamos a fazer paradas gay em Bragança, uma sem vergonhice pegada). Bem, é ridículo de mais para ser verdade, mas foi-o mesmo durante tanto tempo. Depois há aquelas pessoas que dizem à boca cheia que dantes é que era bom. Não havia sequer direito de reunião, de associação ou livre expressão, mas essas pessoas desbocadas por natureza iriam conseguir certamente encontrar alguma forma de serem felizes. No entanto, em vez do orgulho em espalhar aos sete ventos “a minha filha é formada”, anunciariam com o mesmo brilho nos olhos “a minha filha sabe ler e escrever, foi até à 3ª classe”. O céu é o limite para ela e para a sua geração. Depois há os que insistem em salientar que falta cumprir Abril. Como se Abril viesse com uma missão encomendada tipo agente dos Serviços de Informação ou fosse aquele senhor da Nazaré que veio cá para nos salvar. Por acaso não estava a falar do americano do surf, mas do que andava por cima das águas sem precisar de prancha. Também se escreveu há uns tempos que faltava cumprir-se Portugal e Portugal, que eu tenha reparado, ainda não se cumpriu por aí além. Quanto muito vai-se cumprindo aos soluços e aos solavancos. A não ser que o cumprimento fosse ganhar o Europeu e a Eurovisão e pronto, está feito. Se calhar tenho andado um pouco distraído. Por isso não sei porque é que Abril carrega esse peso. Abril simplesmente abriu as portas como um porteiro de discoteca… Não, ao contrário, como um guarda abre as portas da saída da prisão. Agora faz o que quiseres, é contigo. E não fez pouco, deixem-me que vos diga, tendo em conta o estado em que a coisa estava. Vai, cai, levanta-te, mas sê feliz. Pelo menos tenta. Abril e o próprio Portugal, as duas únicas coisas eternamente por cumprir neste país. Não sei porquê esta constante ideia de algo inacabado ou imperfeito. Está bom mas falta-lhe um pouco mais de sal, eu gosto dos ovos mexidos mas dispenso a alheira, eu não lhe punha tanta cebola, para mim é um carioca de limão. Bem, não vale a pena porque afinal faz parte. Faz parte desta coisa de ser português e quanto a isso... É verdade, três, o défice. Também nos falta sempre cumprir o défice. Não há volta a dar. Quatro, o código da estrada. Também está sempre mal cumprido. Bem, é melhor parar por aqui. Abril trouxe liberdade. Só isso já é razão para um grande “viva”. Abril trouxe pelo menos outro paradigma para fazer as coisas. E sobretudo trouxe Europa, modernidade, desenvolvimento, mudança. É admirável como um país tão confrangedoramente atrasado a todos os níveis consegue após 40 anos desenvolver-se ou aprovar leis que estão na vanguarda do mais progressista que se legisla no mundo. Portugal vai-se cumprindo à sua maneira e, apesar da caminhada ser sempre longa e espinhosa, tem hoje razões de sobra para estar feliz. Eu vivo num país onde cabe 20% da população mundial, mas em que nenhum cidadão tem liberdade sequer suficiente para escrever abertamente um artigo tão perdido no mundo e inofensivo como o que acabo de escrever. Em que nenhum cidadão pode ter pelo menos a ilusão de que pode decidir o futuro do seu país através de um voto. Em que grande parte dos direitos fundamentais do meu país são aqui meras quimeras por sonhar. Eu dou valor. Viva Abril e viva a liberdade. Sempre!

 

Manuel João Pires