As casas velhas a nordeste

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As casas velhas das nossas povoações estão a cair numa derrocada medonha, prenúncio de tantas mortes anunciadas que paulatinamente trazem o silêncio e o abandono às antiquíssimas aldeias transmontanas.
As casas caiem como se caísse um pouco de nós e fica somente uma tristeza profunda olhando os sítios, os recantos onde fomos tão felizes.
Morremos aos poucos em cada pedra e na soleira da velha porta passam as nossas memórias vestidas de luto.
Domingo à tarde na aldeia da nossa infância. Era um dia soalheiro. Entre dois dedos de conversa e a prova do vinho, sempre o melhor do mundo, lá vamos dizendo por dizer, este ano a geada chegou anunciando um mau prenúncio e os netos não irão comer as cerejas do cedo, enquanto as nogueiras ficaram reduzidas a cinza, negando a esperança dum Verão a oferecer-se em mil frutos de infindas cores e múltiplos sabores.
- Dizem que as casas velhas ainda vão valer dinheiro!
Comentava, sem grande convicção, o idoso mais idoso da aldeia que estoicamente tem assistido à fantástica derrocada do casario que penosamente acompanha a morte dos seus donos.
Para passar o tempo fomos ver uma casa abandonada do idoso. Tem curral para cinco juntas de bois, forno, varanda sempre com sol, lá se criaram doze filhos e por lá dormiram criados e pedintes.
Depois, um longo silêncio de recordações e nem o copo bebericado entre duas azeitonas apagou memórias antigas, tempos fecundos do lavrar da horta, do apanhar as batatas, das noites de Verão cheias de lua, enquanto se esperava a água para regar a faceira.
Paramos em frente à casa. Primeiro um imenso terreno circundante. Terra funda. As silvas cresceram imponentes. De onde em onde ainda se podiam adivinhar floreiras que fizeram o encanto das mulheres da casa, zeladoras do altar da Senhora do Rosário. Depois tentamos entrar na grande cozinha transmontana que dava passagem para os quartos com grandes sobrados de castanho velho. Impossível. A casa desmoronou-se, silenciosa, sem grande espavento, não resistindo às últimas invernias.
Não houve palavras. Não se falou mais em comprar e vender. Reinou o silêncio por todo o vale habituado à gritaria dos miúdos que aproveitavam a planura da aldeia, para correr, inventar o jogo, ensaiar a liberdade num País de repressão.
As nossas aldeias são efetivamente um desencontro de culturas, onde as casas velhas contrastam, cheias de pudor, com o luxo das casas novas, bizarras, agressivas, descaradas. De onde em onde há reparações nas paredes de pedra, sobressaindo o tijolo vermelho, ou remendos nos telhados, onde a telha de canal sucumbe perante o fulgor de telas de material plastificado.
Esta “multiculturalidade” empobrece o nosso meio rural. Algumas Câmaras Municipais estão sensibilizadas para este problema. Outras resolvem o fundamental, o mais urgente, que passa pelo calcetamento das ruas, pelo saneamento e culmina com a Sede da Junta de Freguesia, ou Associação Cultural.
Mas valia a pena, apostar num plano integrado de desenvolvimento que devolvesse a dignidade perdida às nossas aldeias que reabilitasse as casas, cheias de história, documentos duma antropologia de época, explicativa dum modo de vida, duma economia, duma infinidade de relações sociais de parentesco e de vizinhança.
Todos concordam que o nosso futuro pode passar pelo turismo de habitação, pelo turismo de natureza. Então temos que criar condições para terminar com o fatalismo duma morte anunciada que passa pelo contar mórbido do próximo morador que vai falecer, ou partir para outras terras.
O nosso futuro é aqui e vale a pena apostar em nós.

Fernando Calado