Uma sentença da usucapião que durou pouco:
• A seara da vila
3. Gimonde ganha e Bragança perde No final, o corregedor, colocando-se no pedestal de Salomão – o rei sábio -- acima de ambas as partes, como juiz prudente e justo, produziu a sua sentença. Ninguém saía dali, sublinhava ele, cantando vitória. Eufemismo que escondia o triunfo total dos moradores de Gimonde. Ora vejamos: do caminho que saía da villa para o castello d’Outeiro, ou seja, da actual estrada de Alfaião, até ao Sabor, encosta que não tinha sido semeada, nada mudava, continuando os gados de Gimonde em pastoreio livre (sem contradiçom alguua). Quanto à outra pendente, virada a sul, até honde corre a rybeira que chamam Fervença, os moradores de Bragança apenas seguravam as searas daquele Dezembro de 1438 até ao Verão seguinte, porque tudo estava bem lavrado e semeado, louvava o magistrado. Mas, depois da dita terra ficar livre das sementeiras, tudo voltava a ser como dantes: que os ditos autores as possam pastar com quaisquer gados, sentenciava, peremptoriamente, o corregedor. Aos pastores e boieiros de Gimonde só faltou uma concessão: a de avançar logo com os gados sobre as searas, então já viçosas, adubadas por muita sedimentação orgânica de um pousio prolongado, imposto pela peste. Mas, segadas feitas, os gados de Gimonde podiam logo deliciar-se, sobre o restolho das searas de Bragança, debicando, sôfregos, as espigas que tinham escapado das ceifas. Por agora, toda a mesopotâmia, entre a vila e a ponte de Valbom, sobre o Sabor, ia regressar ao uso pastoril dos moradores de Gimonde. Não se cumpria assim o objectivo do concelho de Bragança de recuperar a posse de toda aquela seara – a tulha da farinha da vila. Faceira que já era sua, antes da peste negra começar a matar, noventa anos antes, no Outono de 1348. A retoma deste maná de centeio e trigo ficava assim adiado por mais 52 anos, como veremos na terceira parte deste estudo. No ponto seguinte -- o objectivo perseguido deste trabalho -- vamos analisar alguns considerandos da sentença, usando-os como uma espécie de lentes, verdadeiras cápsulas do tempo, que nos vão abrir as portas da vila para observarmos a herança física e mental dos últimos 90 anos de surtos pestíferos, que ora se apagavam, ora se reacendiam, mas que continuavam a amontoar mortos nos adros das quatro igrejas paroquiais da vila de Bragança. 4. Os fundamentos da sentença: as lentes sobre uma vila sem memória Pode uma sentença, passados 583 anos, trazer-nos ainda notícias frescas – só as estamos a saber agora -- da tragédia de Bragança, assaltada por 90 anos de pestes, e reduzida a menos de um quarto da população? Que fios utilizar para lá chegar? Puxemos alguns deles. De Gimonde, segundo o texto jurídico, foram inquiridas, como testemunhas, três boos homes, convém a saber, Fernam Pirez, e Fernam d’Affonso e outro em nome da dita alldeia e dos moradores della. Todos declararam que os vizinhos de vila de Bragança nunca de tall couto usaram. O procurador dos réus de Bragança, Affonso Garcia, e as testemunhas Rodrigo Affonso e Gil Affonso, estes dois últimos designados como boos escudeiros, não foram capazes, com as suas contraditas, de desfazer a prova dos autores de Gimonde. Pior, os advogados dos réus teriam deixado o corregedor desconfiado. E porquê? É que, espremendo os nomes dos três, ficamos a saber que eram todos do mesmo clã familiar. Ora, repare-se: os dois filhos têm igual patronímico (segundo nome) – Afonso -- que é a designação do primeiro nome do pai: Afonso. No século XV, o patronímico ainda não tinha fecundado o apelido, como hoje o usamos. Esta constatação reflecte uma vila de Bragança seca de gente, não conseguindo trazer à demanda outros testemunhos, para além dos oficiais da autoridade concelhia. Ou seja, as testemunhas confundiam-se com o poder, que, a tudo o custo, queria ganhar o litígio. Nestes termos, poderia a justiça aceitar uma produção de prova, gerada exclusivamente dentro de uma só família, e que também detinha o poder político concelhio? Da parte de Gimonde, não havia este aleijão processual. Uma terceira testemunha fora chamada à demanda em nome da ditta alldeia e dos moradores della. Isto é, tinha sido designada pelo conjunto dos vizinhos para os representar no pleito. Tudo transparente. Ao contrário de Bragança, que não foi capaz de apresentar uma única testemunha em nome dos seus moradores, na aldeia dos “quatro rios” havia recursos probatórios abundantes. A afirmação da sentença, referindo explicitamente que (…) a prova dos réus lhes não aproveita, não deixa lugar a dúvidas quanto à ineficácia do testemunho dos procuradores dos réus e das inquirições efectuadas aos vizinhos da vila. Ou seja, apesar da função exercida pelos três depoentes de Bragança – os mandantes do poder concelhio -- o corregedor não acolheu as suas provas. E foi assim que a vila de Bragança, sendo a proprietária histórica da seara entre o Sabor e o Fervença, como veremos mais à frente, perdeu este pleito da usucapião com Gimonde, porque o ponto -- o quid -- do litígio era este: ninguém na vila se lembrava das lavranças e sementeiras outonais dos moradores de Bragança, entre o Sabor e o Fervença. Do que sabiam, isso sim, era do pastoreio dos rebanhos de Gimonde, mesmo às portas da vila, presenciado ao longo das últimas dezenas de anos. Este é que foi o gume afiado do confronto jurídico, sobre o qual desabaram, com estrondo, as provas dos magistrados da vila. Com a matança da peste negra, perdera-se a memória individual, a da família e a identidade colectiva da vila de Bragança. Os homens-memória, os mais velhos – os acumuladores de conhecimento -- foram os primeiros tragados no sorvedouro de quase um século de catástrofes pandémicas. A memória da vila, agora tão necessária para reaver a seara perdida, apagara-se com eles. Sobre a paisagem urbana de Bragança, com alguns moradores apáticos e assombrados, descera uma névoa cerrada de esquecimento, que sepultou antigos direitos públicos da vila, que pareciam, antes da peste, adquiridos para sempre. Por outro lado, o facto dos oficiais do concelho de Bragança terem sido transvasados da mesma família -- o pai e os dois filhos – reflecte bem que a elite dirigente do concelho esgotara já todas as soluções de rejuvenescimento do poder. Este clã estava sozinho ao leme do concelho. Os veios das linhagens, habitualmente chamadas às magistraturas para lhes trazer sangue novo, já tinham secado. E, assim depauperadas pela hecatombe pestífera, as opções de renovação da cúpula municipal debatiam-se com uma impossibilidade objectiva: não havia donde trasfegar seiva nova para remoçar a aristocracia, que costumava disputar o cume do poder concelhio. Como os leitores já terão concluído, moradores de Gimonde foram mais poupados pelas grandes pestilências medievais do que os de Bragança. O enorme rombo territorial, que fizeram ao termo da freguesia de Santa Maria -- e que mediremos mais à frente -- levando os seus gados a pastar, mesmo nas barbas da vila, durante dezenas de anos, confirma aquela dedução. Mas outras provas surgirão na última parte deste estudo.
(continua na próxima edição)
In memoriam de Teófilo Vaz
Ernesto Albino Vaz