Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- Presos como fautores de heresias

PUB.

Procuravam saber os inquisidores se foi apenas com a leva de Novembro de 1714 que se deixaram os presos comunicar com parentes e amigos, ou se isso era já vício antigo. A esse respeito, veja-se a informação dada pelo comissário Miguel Ferreira Perestrelo:  - Eu mal posso avisar das pessoas que falaram com os presos, porque na verdade não sei, porque assisto em Rebordãos (…) recomendei sempre que não falassem os presos com pessoa alguma pois me diziam que deixavam falar, e me responderam que nenhuma pessoa ia falar com eles; porém sempre fiquei com algum escrúpulo pelo que me diziam, e juntamente pelo que ouvia estes anos atrás que faziam o mesmo. E por essa razão escrevi que me parecia houvesse uma Pastoral que toda a pessoa que deixasse falar os presos seria presa; para que dessa sorte se cuidassem os escrúpulos e murmurações…  Depreende-se desta informação que tal vício vinha já de antes e que o remédio recomendado seria uma “Pastoral” que fosse lida nas igrejas ameaçando os depositários que seriam presos, se permitissem tais irregularidades. No mesmo sentido vai o testemunho do comissário Manuel Camelo de Morais que até apresenta um exemplo concreto. Veja-se: - A respeito de evitar as comunicações com os presos, tenho feito as diligências necessárias e possíveis para evitar este inconveniente; mas que não tem remédio, sem se descobrir algum género de castigo, porque agora me consta que este preso, estando em casa do sargento-mor desta praça, onde o mandei pôr, o deixou falar com algumas pessoas da nação, quando era uma hora da noite, sem embargo de lhe recomendar a ordem de Vossas Senhorias e do castigo que merecem por esta culpa. Enquanto a atalhar à comunicação dos presos pelo caminho, também me parece impossível, que a ser preciso, à noite, nas estalagens, acomodam-se juntos e na estrada falarem uns com os outros, sem os familiares poderem dar remédio neste prejuízo.  Em outra carta do mesmo comissário para a inquisição de Coimbra se nota a sua preocupação, referindo que, na ocasião de receber uns mandatos de prisão, ele recorreu aos serviços do Conde de Alvor, então a comandar as tropas em Bragança, informando: -O senhor Conde de Alvor fez a prisão de três, com toda a satisfação; e recolheu uma presa para dar o exemplo às pessoas desta terra que se desprezavam de recolher presos.  Analisando estas e outras informações, o inquisidor António Portocarreiro explicava que as irregularidades aconteciam por causa das “pendências temporais que deles têm”, significando que até aquelas pessoas, das melhores famílias cristãs-velhas, gente da nobreza e do clero, estavam dependentes do dinheiro e dos favores dos cristãos-novos. E o mesmo inquisidor concluía: - Era tão contrário e devasso em todos os depositários o fazerem essas permissões que delas tinham, todos os que eram presos, ocasião de ajuntarem o modo com que haviam de formar e provar as suas contraditas, ou as pessoas de quem haviam de dizer, ou o tempo em que haviam de confessar, para que pudessem sair livres da pena que merecessem ou outras pessoas tivessem tempo de se ausentar.  Tudo visto e ponderado, decidiram os inquisidores chamar a Coimbra as 8 pessoas em cujas casas foram depositados os presos. No entanto, não foram mandados ir todos ao mesmo tempo. Assim, no dia 16 de junho, o cura da igreja de S. João Batista assinava a certidão seguinte: - Certifico eu como, por ordem do Rev. Manuel Camelo Morais, abade desta igreja e comissário do santo ofício, que notifiquei a Teodora de Almeida, Sebastião Gomes e João Martins Garcia, todos moradores nesta cidade para que dentro de 15 dias aparecessem na referida inquisição… Apresentaram-se os três na inquisição, no dia 1 de Julho seguinte. Teodora de Almeida, 55 anos, era irmã do padre Bernardo Rebelo, em cuja casa esteve depositada Maria do Couto, viúva de Francisco Domingues. Confessou que efetivamente deixara as pessoas falar com a prisioneira e que não fora advertida pelo comissário para o não fazer e “entendia ela declarante que não cometia culpa alguma em dar o dito consentimento”. Obviamente que os inquisidores lhe chamaram a atenção para a gravidade do ato e a avisaram que, se voltasse a cometer semelhante culpa, seria castigada com todo o rigor, o que ela prometeu cumprir. Sebas - tião Gomes, 40 anos, era escrivão dos mantimentos da tropa, filho de Sebastião Gomes e Maria Pires, natural da aldeia de Rebordãos, casado com Maria da Costa. Em sua casa esteve depositado Francisco Rodrigues Ferreira. Tal como os outros, foi acusado de “impedir o reto ministério do santo ofício e fautoria de judaísmo”. A sessão com o inquisidor Dr. José Gama Lobo foi em tudo semelhante à de D. Teodora de Almeida, bem como o aviso ameaçador. João Martins Garcia, 50 anos, tecelão de sedas, viúvo de Ana da Costa. Interrogado pelo inquisidor Portocarreiro, confessou que, de facto, lhe foi recomendado que não deixasse o preso falar com ninguém. No entanto não respeitou esta recomendação, por ver que os outros depositários deixavam falar, “entendeu que também o podia fazer”. Os depositários Bento da Cunha e Pedro Ferreira de Sá foram notificados no mês seguinte, em 8.7.1715, pelo cura da igreja de S. João, por ordem do comissário Botelho de Morais, recebida de Coimbra no dia anterior. O primeiro apresentou-se na mesa do referido tribunal no dia 23 seguinte e foi interrogado pelo inquisidor Gama Lobo. Apresentou-se como cristão-velho, guarda da Alfândega de Bragança, de 60 anos de idade, viúvo de Maria da Silva. Disse que tivera depositada em sua casa, dois anos atrás, uma cristã-velha chamada Úrsula de Figueiredo e em Novembro passado uma filha de João de Castro, meirinho dos assentos, cristã-nova, Mariana de Castro, Procuravam saber os inquisidores se foi apenas com a leva de Novembro de 1714 que se deixaram os presos comunicar com parentes e amigos, ou se isso era já vício antigo. A esse respeito, veja-se a informação dada pelo comissário Miguel Ferreira Perestrelo: - Eu mal posso avisar das pessoas que falaram com os presos, porque na verdade não sei, porque assisto em Rebordãos (…) recomendei sempre que não falassem os presos com pessoa alguma pois me diziam que deixavam falar, e me responderam que nenhuma pessoa ia falar com eles; porém sempre fiquei com algum escrúpulo pelo que me diziam, e juntamente pelo que ouvia estes anos atrás que faziam o mesmo. E por essa razão escrevi que me parecia houvesse uma Pastoral que toda a pessoa que deixasse falar os presos seria presa; para que dessa sorte se cuidassem os escrúpulos e murmurações… Depreende-se desta informação que tal vício vinha já de antes e que o remédio recomendado seria uma “Pastoral” que fosse lida nas igrejas ameaçando os depositários que seriam presos, se permitissem tais irregularidades. No mesmo sentido vai o testemunho do comissário Manuel Camelo de Morais que até apresenta um exemplo concreto. Veja-se: - A respeito de evitar as comunicações com os presos, tenho feito as diligências necessárias e possíveis para evitar este inconveniente; mas que não tem remédio, sem se desde seu nome. Confessou que efetivamente consentira que várias pessoas cristãs-novas falassem com a prisioneira. Perguntado se fora avisado para não autorizar tal abuso, respondeu que se encontrava fora quando entregaram a prisioneira em sua casa, a sua filha e por isso não sabia responder. O resto já os leitores imaginam: recomendações, ameaças… Quanto a Pedro Ferreira de Sá Sarmento, em cuja casa esteve depositado Henrique Rodrigues Ferreira, logo no dia em que recebeu a ordem de apresentação em Coimbra, muniu-se de um atestado, passado pelo Dr. Francisco Mendes Franco, médico do partido da cidade de Bragança, que enviou para Coimbra, juntamente com a seguinte carta por ele escrita: - O Reverendo comissário abade de s. João desta cidade me avisou que, no termo de 15 dias, fosse à presença de Vossas Senhorias. E os meus achaques, que constam da certidão junta, me impossibilitam a prontidão com que desejo e devo obedecer a Vs. Sas. Mando o meu filho e quando o seu préstimo não seja suficiente que me escuse desta jornada, peço a Vs Ss se dignem dispensar o termo até refrescar o tempo, porquanto desejo muito oferecer-me aos pés de Vs. Sas e mais livre das minhas queixas empregar-me no serviço de tão santo tribunal. Bragança, 9 de Julho de 1715. Pedro Ferreira de Sá Sarmento. 

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães