Auxiliar, favorecer ou promover qualquer ação em favor dos judeus, constituía um crime grave, designado por fautoria. Tomar conhecimento de qualquer comportamento, atitude ou cerimónia judaica e não a denunciar era motivo de prisão por fautoria. Encobrir hereges era impedir o reto funcionamento do santo ofício, crime também de fautoria. Ao longo do nosso trabalho de investigação deparamos com processos vários de fautoria, com tratamento bem diferenciado, por parte dos inquisidores. Entre os casos de fautoria que estudámos, três merecem especial referência:
Na década seguinte, idêntico processo foi instaurado a dois cristãos-novos, mercadores de Lebução, termo de Chaves que se fizeram passadores de judeus, chegando a passar gente vinda de Lisboa, Porto e Coimbra para Castela. (3)
No caso de Bragança, que temos vindo a estudar, envolvendo 8 cristãos-velhos da fina-flor da sociedade da terra, o crime consistiu em deixar os presos que foram depositados em suas casas durante dois dias, falar com outros cristãos-novos seus familiares e amigos, certamente aproveitando para combinar como se haviam de defender. Ao contrário dos casos anteriores, nestes processos os inquisidores foram particularmente benévolos, já que não decretaram qualquer prisão, limitando-se a chamar os fautores de hereges a Coimbra e admoestá-los que não voltassem a fazer o mesmo. Até as custas do processo foram relativamente baratas, limitando-se a pagar as despesas das diligências feitas em Bragança e que foram as seguintes:
Ao comissário Manuel Matos Botelho 12 040 réis.
Ao escrivão pe Álvaro Madeira 9 309 Notificações 1 240 Total 22 589
Ao comissário Manuel Camelo Morais 080
Ao escrivão pe Bernardo Rebelo 124 Notificações ao mesmo 080
Notificações ao pe Roque do Cousso 280
Total 564
António Morais Pinto, morador na Rua dos Oleiros, era tenente-coronel e desempenhara já o cargo de vereador da câmara. (4) Era também proprietário de um ofício de tabelião do judicial e notas de Bragança. (5) Um homem muito importante, no seio da sociedade brigantina. E de tal confiança, no que respeita à sua conduta religiosa, que o santo ofício lhe confiava a guarda de prisioneiros destinados a ser remetidos para Coimbra.
Aliás, já o seu pai, Pedro Pinto Agrasso, gozava de grande prestígio em Bragança, apresentando uma série de mercês régias, nomeadamente um alvará concedendo-lhe a propriedade do ofício de escrivão da remissão dos cativos em Bragança. Como se sabe, naquela época eram muito frequentes os assaltos em barcos e regiões costeiras, com a redução dos prisioneiros a escravos que depois eram vendidos e/ou resgatados, sobretudo entre cristãos, mouros e turcos, que viajavam e negociavam, especialmente em regiões do norte de África e Médio Oriente. E para acorrer a esses resgates, em todas as terras de Portugal, incluindo aldeias, se faziam coletas de donativos, especialmente aos domingos, à entrada para a missa. Compreende-se assim, a responsabilidade e importância do alvará concedido pelo rei D. Afonso VI a Pedro Pinto. (6)
Porém a mais importante das mercês concedidas foi a do hábito da Ordem de Cristo, com a tença anexa de 30 000 réis. (7) A tença, sim, tornou-se logo efetiva, mas o hábito de cavaleiro só o receberia depois do processo instruído no âmbito da inquisição, provando que ele era de sangue limpo de “infecta nação” e família que vivia “à lei da nobreza”. Provou-se então que ele era filho ilegítimo de Paulo António Agrasso e, por isso, foi impedido de receber tal honra e ascender à classe dos cavaleiros.
Impedido de ascender à classe dos cavaleiros da Ordem de Cristo, Pedro Agrasso fez-se frade, obtendo o hábito de noviço, por alvará régio de 26-11-1665 e, anos depois, obteve um alvará concedendo-lhe lugar de capela na igreja dos freires de Cristo. (8). E se Pedro Agrasso não obteve o colar da Ordem de Cristo, o filho obtê-lo-ia, como vamos ver.
Com efeito, em 2 de Setembro de 1720, o rei D. João V assinou o seguinte alvará:
- Tendo respeito aos serviços de António Morais Pinto Agrasso, natural e morador na cidade de Bragança, obrados nas províncias da Beira e Trás-os-Montes, por espaço de 37 anos, 9 meses e 22 dias, contados de 21 de Novembro de 1674 até 25 de Abril de 1715, em praça de soldado e nos postos de alferes, ajudante, sargento, capitão, ajudante, tenente de mestre de campo general, tenente coronel, entretido e com exercício, e no decurso dos referidos anos ir em 1692 à província da Beira assistir à entrada da Srª Rainha da Grã Bretanha; o de 1699 de guarnição para a marinha da vila de Azurara; o de 1707 se achar no assalto à praça de Alcântara, de que saiu ferido com uma bala que lhe passou a coxa da perna direita, de que esteve em grande perigo e no sítio de Badajoz; o de 1706 se achar no rendimento das vilas de Brozas, Alcântara, Moraleja, Cória, Plasencia e Ciudad Rodrigo; o de 1706 na batalha de Almansa, com grande valor e actividade; e vindo para este reino curar- -se de achaques, se apresentou na vedoria de Chaves. Em 1710, por notícia que o inimigo intentava assaltar a praça de Bragança, lhe encarregou o governador dela rondas em determinadas horas, o que, constando ao inimigo, desistiu do intento e levantou o campo; sendo finalmente encarregado do governo da praça de Miranda, por impedimento do governador dela, procedendo sempre no real serviço com valor e acerto conhecido; e lhe pertencer outrossim um alvará de promessa de um ofício de justiça ou fazenda de 23 de Novembro de 1693, de que se havia feito mercê a seu pai Pedro Pinto Agrasso e uma provisão de 198 mil e 81 réis que se passou em 2 de Dezembro de 1673, procedida de uma tença de 300 mil réis, na alfândega do Porto. Em satisfação de tudo,
Há por bem fazer-lhe mercê de 150 mil réis de tença efetiva em um dos almoxarifados do reino em que couberem, sem prejuízo de terceiro e não houver proibição com o vencimento, na forma da ordem de Sua Majestade, dos quais serão 40 mil réis para seu genro Francisco de Azevedo Monteiro e outra tanta quantia para seu neto Francisco de Azevedo Pinto e 50 mil réis para D. Ana Teresa, também sua neta… (9).
Obviamente que para receber o grau de cavaleiro da Ordem de Cristo lhe foi necessário provar a limpeza de sangue e “viver à lei da nobreza”. E aqui deparou com o mesmo obstáculo de seu pai, que fora filho ilegítimo e que “seus avós paternos eram pessoas de segunda condição”.
Recorreu, solicitando a el-rei que o dispensasse daquelas “provanças” atendendo “que há 40 anos que serve V. Majestade, ocupando todos os postos, até o de tenente-coronel, com actual exercício no regimento de infantaria de Bragança, sendo um dos primeiros capitães de infantaria que entrou pela praça de Valencia de Alcântara, em cuja ocasião derramou o seu sangue, sendo passado por uma bala…”
Atendeu Sua majestade o requerimento e António de Morais Pinto Agrasso foi armado cavaleiro da Ordem de Cristo, em Março de 1721.
Notas:
1 -ANDRADE e GUIMARÃES, A Tormenta dos Mogadouro na Inquisição de Lisboa, ed. Vega, Lisboa, 2009.
2.ANDRADE e GUIMARÃES, Nas Rotas dos Marranos de Trás-os-Montes, Âncora Editora, Lisboa, 2014, pp. 79-171.
3-ANDRADE e GUIMARÃES, Nós, Trasmontanos, Sefarditas e Marranos, Manuel da Fonseca (n. Lebução, 1614), in: Nordeste nº 1109, de 13.2.2018; João Lopes Dias (n. Sambade, 1631), in: Nordeste nº 1110, de 20.2.2018.
4-ALVES, Francisco Manuel, Memórias Arqueológico Históricas do Distrito de Bragança, Tomo III, p. 35.
5-Idem, Tomo X, p. 400.
6-RGM/Chancelaria de D. Afonso VI, liv. 16, f. 14.
7-TSO/CG-Habilitações para a Ordem de Cristo, letra P, mç 11, nº 171.
8-Idem, Mercês de Ordem Militares, liv. 7, f. 7; Mercês de D. João V, liv. 22, f. 422v.
9-TSO/CG-Habilitações para Ordem de Cristo, letra A, mç. 51, nº 51.