Beatas

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Vou escrever sobre beatas e não acerca das beatas queirosianas. Das beatas de vários tamanhos e marcas vistas nos lábios dos homens a repousarem nas ruas e sarjetas de Bragança na minha adolescência. Das beatas mitigadoras do vício e extrema pobreza de velhos desdentados, sujos, maltrapilhos, frequentadores dos locais onde em determinadas horas, em determinados dias a população de beatas aumentava e as catástrofes, enxurradas, lavagens e varridelas não as apoquentavam.

Nunca esquecerei o antigo homem de forças capaz de subir a Costa Grande levando uma pipa de vinho sobre os ombros, o Boneca, a disputar beatas na entra do Cinema Camões em dia de sessão, aqueles olhos salientes, remelosos, a olharem enquanto as mãos encardidas, desajeitadamente, recolhiam quantas pontas de cigarro pudessem a fim de seguidamente retirarem o conteúdo, o almejado tabaco, a fim de ser misturado, enrolado em papel às vezes de jornal, de modo a o paivante ficar parecido com os do Senhor Poças, o qual os mantinha na boca todo o dia enquanto contemplava os clientes do seu café e restaurante.

A apanha de beatas estendia-se às ruas e praças, dava dó ver antigos latagões reduzidos a corpos vítimas da escassez de alimentos e abuso do bagaço retemperador, de olhos postados no chão porque as piriscas variavam de comprimento, as mais cobiçadas tinham filtro a impedir desperdícios, também as das marcas três vintes, vinte cigarros, vinte gramas e vinte tostões, Hig-Life, e Ducados (do outro lado da fronteira) davam azo a disputas envolvendo unhadas porque os cigarros continham mais conteúdo.

Nessa época não era raro vermos adultos descalços, normal as crianças desconhecerem o conforto de botas, quanto mais de sapatos, embolsavam restos de cigarros a fim de os passarem para a mãos dos homens alquebrados, sem forças, o salazarismo lançava campanhas contra o pé-descalço e o escarrar na via pública, os resultados, escassos, não surpreendiam, da mesma maneira o nojento uso do lenço de cinco dedos da mão. Nas tabernas de Bragança os esbanjadores de outrora no decurso da operação de esvaziarem os pequenos copos com aguardente, cálices, volta que não volta assoavam-se de forma a com auxílio dos dedos expelirem as mucosidades esfregando a seguir a mão às calças delidas de onde retiravam a beata ou beatas no formato de cigarros enrolados em imitações de mortalhas.

A descrição pode enjoar nos dias de hoje, na altura todos viam, médicos, agentes de autoridade, burocratas da administração pública, mulheres, eclesiásticos, raparigas, todos, ninguém protestava, este e outros usos vinham de longe, José Leite de Vasconcelos já os tinha denunciado na Etnografia Portuguesa, pobretes, alegretes, a porcaria senão matava engordava.

O Boneca é expoente de um tempo cão, tomei óleo de fígado de bacalhau para fortalecer, a maioria das crianças nada tomavam ou se tossiam a mãe dava-lhe um pouco de aguardente, todos os Bonecas procuravam gastar os dias sem fazerem grandes movimentos, os estômagos não geravam energias, tinham sido fortes na juventude, na antecipação da morte, mercê da caridade de muitas pessoas, maioritariamente senhoras praticantes do segredo da mão direita relativamente à esquerda. A sopa dos pobres (do Sidónio) representava um lenitivo assinalável, após o caldo e o naco de pão umas fumaças bem puxadas davam aos praticantes mitigado prazer, mas tal consolo valia tanto como as cigarradas dos frequentadores do Chave d’Ouro, Central ou Moderno, os melhores e mais salientes no burgo, embora no tamanino Machado os seus clientes bebiam licores finos e os charutos não eram desconhecidos, no rol de despesas do Padre Francisco Manuel Alves, Abade de Baçal, surgem inúmeras referências à compra de charutos fumados no fim de funçanatas gastronómicas na célebre Maria do Rasgão, emérita cozinheira capaz de preparar comeres de substância e grande apuro para gáudio do Senhor Abade e o gourmet Zezinho Montanha de demais companheiros de bródios, sem esquecer convidados ilustres vindos de todo lado. Ora, vários clientes da Senhora cozinheira acabaram a agacharem-se na apanha de beatas, imitando os mariscadores da Ria Formosa.

O Toninho sanfarriã estourava as pulgas na frente de quem passava, um cigarro, pulga exterminada, trabalhava na área da pesquisa de beatas, preferentemente, entre a Praça da Sé e os CTT, numa madruga frígida, na altura de os noctívagos saídos da casa de petiscos e acima de tudo vinho do Sr. Cipriano Augusto Lopes se cruzaram com ele, descalço, de peito aconchegado por jornais, pediu um cigarro. Tremia quanto um sabugueiro treme em noite ventosa. Recebeu vários cigarros, agradeceu, ao mesmo tempo esfregava os pés descalços no chão. Precisava de os aquecer!

Das outras beatas lembro-me das mais madrugadoras, ia deitar-me… O Senhor Padre Machado, fumador inveterado rezava a missa matutina.

Armando Fernandes