Assadores furtivos

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Boa tarde a todos, principalmente aos que vivem o luxo, e se calhar não sabem, de se assomarem à rua para se sentarem no banco de pedra à porta de casa e ficarem a ver os fins de tarde passar. Bem haja vós! Aqui perto de mim quando passo pelos fins de tarde vejo um restaurante que tem sempre dois senhores, um de cada lado, a dar fogo às peças ou a pôr as peças no fogo. Cada vez que passo por lá lembro-me das pessoas que trabalham nas churrasqueiras a virar frangos e pianos de entrecosto, sai frango e meio com batata e arroz, o pessoal dos santos populares que vive as festas na óptica do fogareiro entre nuvens de sardinhas, pimentos e bifanas, os homens dos restaurantes com assados na brasa a tratar diferentes tipos de pescado com o respectivo carinho e a carne passada mal ou bem, nem bem nem mal, mais para o bem, mais para o mal, consoante as demandas e demandices dos clientes. Uma nobre arte de transformar matéria-prima em bruto em valor acrescentado, às vezes em obra prima. Um labor digno de referência, embora furtivo, ou seja, escondido, feito de forma oculta. Aqui trata-se de um restaurante de Xingjian, uma das maiores províncias em área da China, no oeste, em cima do Tibete. A comida e os restaurantes desta região são famosos por dois aspectos: as muitas variedades de massa que são sempre feitas na hora. Os chineses dizem que os italianos devem as massas ao Marco Polo que por aqui andou no seculo XIII. Nao sei se é apenas mito, mas a ser verdade não me espantaria. E depois a carne, por ser uma região montanhosa e com muito pasto. Como é a província onde vivem os Uigures, minoria étnica chinesa de confissão muçulmana, a especialidade é o cordeiro, principalmemte umas espetadas, ou digamos, uns pinchos de cordeiro. Por alguma razão na vila espanhola de Alcañices lhes chamam pinchos morunos, pois foi um hábito introduzido em Espanha pelos mouros como certa vez ouvi da própria senhora Maria do bar/ restaurante “Maria y Manolo” onde os pinchos eram (são) também a especialidade. O mundo é um T-zero deve ser a frase que eu mais repito por aqui. Os Uigures são umas das 56 minorias étincas chinesas, uma vez que 97% da população pertence à etnia Han. O povo uigur por algumas vezes foi notícia ruim - peço desculpa pelo pleonasmo, claro que se é notícia é porque é ruim - mas essas coisas não são preto no branco como os opinadores profissionais fazem sempre tudo parecer. Tenho alunos uigures, sim também há uigures a aprender português (curiosamente na universidade até os próprios colegas chineses lhes perguntam de que país são por causa das suas feiçoes nada extremo-orientais) que me falam abertamente da situação. Os atentados lá são frequentes, eles próprios ja presenciaram alguns, e ninguém se identifica com isso, ninguém gosta de viver num ambiente assim. Os seres humanos de toda a parte querem viver em paz. Vejam no que deu a ETA e os bascos. É bastante complicado, principalmente para os que têm de viver com estas coisas. Para quem vive seguro na paz do senhor sofá, imbuído na falácia dos tempos modernos de que julgamos saber tudo bem sabido por termos muito acesso a informação, e em que estes conflitos são apenas coisas distantes que surgem em ecrãs, para esses costuma ser sempre tudo tão claro como água. Água quente. Por cá as pessoas andam sempre com o termo de água morna ou às vezes de chá, das crianças aos avós, de modo que ver os homens a dominar o assador, sob um calor de humidade sub-tropical e a dar goladas de água quente... É a mesma impressão que os assadores fumadores me causam, no meio de ondas de brasa e fumo e ainda para mais de cigarro na boca para juntarem mais chama a um cenário já de si ardente. É uma sufocante redundância que só de ver desconforta, a alta-temperaruta ao quadrado, lançar ainda mais achas para a fogueira. Ou na verdade, estoicismo. Coisa de faquir, um patamar de atenção plena e imperturbabilidade que se atingirá com a experiência de domesticar o transcendente do incandescente. É isso que mais me fascina, enquanto eu e os outros passamos sobre brasas no ir e vir do trabalho/casa, os assadores mantêm-se sempre furtivamente impassíveis, o avental enciscado, vira, espera, revira, pincelada, golada de água, tudo faz um morno sentido, os dias da vida parecem ali um fogo amigo, um fogo fátuo, um fogo descontrolado transformado em lume brando. Os assadores furtivos são merecedores do nosso agradecimento, de uma devida salva de palmas. A todos os assadores furtivos o meu profundo respeito. Aliás, dever-se-ia decretar o dia mensal da salva de palmas. Não só quando estivessemos com o rabo apertado de medo a bater palmas aos que tivessem de nos ir salvar a pele. Todos os meses se deveria criar o hábito de ir à janela homenagear, batendo palmas ou panelas, um determinado grupo de pessoas. Os seguranças que passam os dias em pé, os que passam os dias sentados nas caixas dos supermercados, os que vivem atrás de balcões. E os restantes. No fundo todos nós somos dignos de empatia e de palmas ou porque trabalhamos uns para os outros ou simplesmente porque só nós sabemos, só Deus sabe, aquilo que nós tivemos de andar para aqui chegar. Alguém tem de começar e eu começo hoje, aliás, começo já. Uma longa salva de palmas e já agora um abraço demorado para cada um de vocês, sim, para ti mesmo caro(a) amigo(a). Tu sabes muito bem porquê!

Manuel João Pires