Água mole – Ponto de vista dois

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Falei do que me parecem ser os benefícios dos fenómenos migratórios. Mas convém tentar ver outras coisas. Mesmo que existisse uma política global, séria, sistemática de recrutamento e integração de imigrantes, isso não isentaria de obstáculos. Repito o que disse noutra altura: viver nestas sociedades ditas ocidentais, não é pera-doce. É certo que vistas de fora elas reluzem e atraem. Mas o relativo desafogo material de que desfrutamos leva-nos couro e cabelo, pagamos com língua de palmo o relativo bem-estar, a ordem, a segurança. Noutras partes do mundo a existência, embora menos segura, é mais relaxada.
Não podendo acolher todos os que de alguma forma se sentem insatisfeitos nas suas terras, porque são muitos, a europa pode integrar uns quantos milhões. Mas duvido que aqueles que a procuram para refazer as suas vidas no aspeto material tenham consciência daquela realidade. E quanto a saberem que ela é apenas a parte visível de uma história de dois mil e quinhentos anos, nem se fala. Além do mais, para os corajosos o panorama não é cor-de-rosa. Esperam-nos pelo menos duas ou três gerações de sacrifício, com dificuldades maiores ou menores em assimilar a língua, a cultura, a mentalidade dos residentes, enquanto vão cortando o cordão umbilical com as de origem, processo penoso que pode não correr bem, e por vezes não corre. Durante esse período, o mais provável é que a grande maioria dos recém-chegados ocupe posições sociais de pouco prestígio e baixos rendimentos. Sobretudo as segundas gerações, já cidadãos de pleno direito mas ainda com hesitações quanto à identidade, podem ter tendência a sentir-se desenraizados, injustiçados, revoltados. Um caldo de cultura propício ao germinar de marginalidades, delinquências ou até crime, como mostram os milhares que se juntaram ao daesh. Ou seja, mesmo uma situação ideal já implica transtornos que bastem. Tudo se complica, obviamente, no caso das deslocações selvagens em massa como as que estão a acontecer, dado o seu potencial desestabilizador.
Uma parte dos intelectuais europeus interiorizou os abusos da exploração colonial, que são factos inegáveis (com a escravatura em plano de destaque), em forma de má-consciência, sentimento reforçado pela noção das regalias de que nesta parte do mundo hoje desfrutamos e que contrastam com as condições menos favoráveis em que vive parte significativa da humanidade. Ora, como é sabido, toda a culpa redunda em desejos de expiação, sendo compreensível que, para muitos, esses complexos latentes sejam despoletados ao depararem-se com aqueles botes a abarrotar de pessoas ameaçando ir ao fundo no meio do mediterrâneo. São cenas que impressionam quem quer que tenha alguma sensibilidade. A este propósito penso nos documentários do início do século passado que mostram imigrantes de toda a europa a chegar à ilha nova-iorquina de ellis. Mesmo à distância não há frieza que resista perante o retrato vivo da pobreza, da fragilidade, da humildade humana. Porém, essa visão romântica contrasta vivamente com a que mostram muitos migrantes de hoje.
Não é o caso de pôr em dúvida a sua qualidade de vítimas, particularmente de redes de tráfico que os exploram e enganam. No entanto, para além de tomarem decisões voluntárias, há em muitos deles uma série de sinais que intrigam e retiram seriedade àquilo que nos é apresentado como problema humanitário. A começar pelo facto de se tratar de gente com muito bom aspeto, que domina as últimas novidades tecnológicas, se exibe em festa para as câmaras mal acaba de saltar a rede em mellila com a ligeireza de quem acaba de ganhar uma competição e, enquanto executa os mesmos trejeitos mímicos de quem está num reality show, deixa imediatamente clara a exigência de um país preferido: germany! england! 
E há outras estranhezas. Conhecemos bem a máxima “quem não tem vergonha, todo o mundo é seu”. Ora, quanto a isso, fico com a incómoda impressão de que a globalização deu a muita gente a sobranceira ideia de que “é tudo nosso”. Afeta-me um pouco que cheguem repletos de direitos, exigindo, manifestando-se, lamentando as fracas condições que encontram pelo facto de terem pago não se sabe a quem uma certa quantia em dinheiro. Coisas que não podem ser encaradas à la légère. E ao exprimir os seus receios perante elas, o cidadão europeu comum não precisa de ser xenófobo ou racista.

Eduardo Pires