A abstenção é um epifenómeno do acto eleitoral. Não há eleições sem abstenção. É uma forma de participação passiva no processo político. É uma forma de se auto excluir, de se alhear das escolhas políticas. Claro que a abstenção tem de estar dentro de limites aceitáveis quando não passa a ser estatisticamente preocupante. É por isso estranho que, depois de tantos anos em ausência de actos democráticos, o povo Português se remeta à abstenção quando instado a pronunciar-se sobre os destinos da sua comunidade. E, no entanto, ela sobe inexoravelmente desde as primeiras eleições livres. Mais de 40% nas autárquicas e nas legislativas, mais de 50% nas presidenciais e quase 70% nas europeias. Os Políticos dizem-se preocupados mas dá-me a ideia que ninguém leva a sério a preocupação deles. Não é por acaso que há 40 anos que o fenómeno abstencionista se vem agigantando e os Políticos ainda não “mexeram uma palha” e não me parece que o queiram fazer. Eles estão mais à vontade com grupos restritos de participantes políticos, grupos manobráveis, moldáveis aos interesses dos directórios políticos. Um Povo com participação política é gente a mais. Repare-se que o Presidente Marcelo falando da abstenção nas europeias manifestou alguma satisfação dizendo que “…até esperava que fosse maior”. Claro que os Políticos tudo fizeram para que a abstenção chegasse onde chegou. Convidam o Povo para o acto formal (eleição) mas não o convidam para mais nada. Acresce ainda que a eleição não responsabiliza directamente os políticos, pois não votamos em ninguém directamente (excepto nas presidenciais) mas sim num conjunto de pessoas. Esse “bouquet” de candidatos que faz lembrar um tractor de lenha pois se por fora apresenta uns rachos bons e bem compostos por dentro só tem guiços. Isso é mais visível quando um Partido faz Governo, levando para este aqueles que lhe parecem mais capazes, deixa no Parlamento os substitutos, uma ganga que ninguém conhece e quando conhecemos é por más razões. Experimentamos, até, algum desconforto por termos contribuído para estas presenças no Parlamento e sussurramos a nós próprios uma pergunta envergonhada: então eu votei “naquilo”? E como é que voto num e me sai outro? Não nos convocam para uma eleição mas sim para um plebiscito à vontade dos directórios políticos. Atente-se nestes dois casos ocorridos nas listas do PSD, no círculo de Bragança e para as legislativas: o PSD propôs como cabeças de lista José Ferreira Gomes em 2009 e Francisco José Viegas em 2011. Eles não conheciam ninguém em Bragança e ninguém em Bragança os conhecia. Mas foram impostos pelo directório e naturalmente ganharam pois o directório sabia, como aliás toda a gente sabe, que Bragança ao eleger 3 deputados, 2 são do PSD e 1 é do PS. Portanto a eleição era garantida. Isto faz-me lembrar uma história antiga. É assim: num ano em que o Benfica estava absolutamente ganhador e em vésperas de um jogo que ia fazer fora, foi pedido a Joaquim Meirim, controverso treinador de futebol, um prognóstico para o jogo. Ele respondeu, sem hesitações, “ganha o Benfica e até escusa de vir cá. Basta mandar as camisolas”. Também o PSD não foi a jogo. Mandou as camisolas e ganhou. Parabéns democracia!
(este exemplo só é chamado à colação por ser em Bragança não por ser visado o PSD. Aliás todos os partidos fazem isto reiteradamente. Veja-se o caso actual de a única cabeça de lista já revelada para as próximas legislativas é Fátima Bento da CDU uma arqueóloga que ninguém conhece. Como quer a CDU entusiasmar os seus simpatizantes?)
É assim que se promove o alheamento, o desinteresse e até a revolta contra o sistema eleitoral, materializada, nestas palavras indignadas: “somos os peões de um joguete entre partidos. Isto não é democracia, e ninguém me peça para votar pois não estaria a cumprir um dever cívico mas sim a ser conivente e a caucionar esta degenerescência da democracia”.
Não será fácil inverter esta tendência. Ao ver instalada a descrença, o desânimo, o “tanto se me dá”, o “não vale a pena” penso que será, até, impossível se não houver alteração das regras eleitorais. Mas também acredito que, se as eleições forem personalizadas, isto é, se votarmos em candidatos a quem conheçamos a cara, o currículo e as motivações e se esses candidatos forem apurados em eleições internas nos partidos, de preferência abertas aos simpatizantes e se as eleições legislativas forem disputadas em círculos uninominais, círculos onde cada partido só pode ter um candidato, a afluência às urnas registaria um acréscimo significativo que, penso, contaminaria todos os processos eleitorais. Vejamos o caso de Bragança: Bragança mete três deputados e, quer chova quer neve, dois são do PSD e um é do PS. Com círculos uninominais os Concelhos do Distrito formariam três grupos e cada grupo elegeria um deputado. Assim o PSD poderia meter 1,2 ou 3 deputados e o PS 1 ou 2. Deixaria de haver o determinismo que nos desmotiva. Deixaria de haver lugares cativos.
Se nada for feito a abstenção crescerá para níveis que fragilizarão a democracia, que farão desta alvo dos populismos e criará constrangimentos, até constitucionais. Porque razão a resposta maioritária do referendo só é vinculativa se a abstenção for inferior a 50% e a eleição do Presidente da República, o homem que nos dirige durante 5 anos, é vinculativa com qualquer “quórum”? Marcelo Rebelo de Sousa já foi eleito com uma abstenção superior a 50%. Nas próximas presidenciais, eu acho que se vai recandidatar, não vai haver ninguém com peso político que se apresente para o defrontar, por motivos mais que evidentes. Assim vai ganhar as eleições por muito mas com uma taxa de abstenção gigantesca. Não há motivação para votar num que “antes de o ser já o era” Vai ser deprimente. (Imaginemos uma abstenção de 80 ou 90%. Deveria o País ficar vinculado a uma regra institucional ou à vontade do Povo que a despreza? Só um novo “João das Regras” conseguirá legitimar uma eleição assim. Como aquele do plebiscito à Constituição de 1933, que somou os votos a favor com os da abstenção. Alegava que a abstenção não é voto contra e se não é contra...)
Não me falem em voto obrigatório. Seria a forma de os Políticos esconderem um dos sinais visíveis da sua má prestação. Num regime que tem por utopia “é proibido proibir” seriamos confrontados com um “obrigatório obrigar”.
Abstenção
Manuel Vaz Pires