Sistema de “Imobilidade” do Tua promete regresso do comboio mas o povo já perdeu a esperança

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Ter, 14/02/2023 - 10:47


O Sistema de Mobilidade do Tua (SMT) foi prometido como a principal contrapartida pela construção da Barragem de Foz-Tua, que começou a funcionar em 2017, mas, até agora, o território e as suas gentes continuam à espera
O SMT contempla uma viagem de autocarro, entre a estação de Foz-Tua e o cais da barragem, uma viagem de barco, desde o cais da barragem até ao cais da Brunheda, e uma viagem de comboio, entre a estação da Brunheda e a estação de Mirandela.
Poucos anos depois do começo do século XXI, a linha do Tua, que ligou, em tempos, Foz-Tua, na Linha do Douro, até Bragança, acabou. O troço Mirandela – Bragança encerrou antes, em 1991. O que restou da linha teve o mesmo fim: o término.
Com a construção da barragem de Foz-Tua, a esperança em ver o comboio, de novo, a apitar por estas paragens perdeu-se. A barragem deixou submersos os primeiros 23 quilómetros da linha e suspendeu a circulação nos restantes, onde se prometeu que o comboio voltaria então a passar, como compensação.
Em 2016, foi concessionada ao empresário Mário Ferreira, proprietário da Douro Azul, a parte turística do SMT. Recebeu 10 milhões de euros para investir no Vale do Tua. O comboio está desde 2018 na estação de Mirandela e o barco está atracado na Brunheda, mas quanto ao avanço do projecto, só promessas.
Até agora, Mirandela, Vila Flor, Carrazeda de Ansiães, Alijó e Murça continuam a aguardar que o SMT se implemente. Mas está complicado. Em causa estará a complexidade burocrática dos processos, que envolvem entidades regionais e nacionais, públicas e privadas, nomeadamente a CP – Comboios de Portugal, a Infra-estruturas de Portugal, o Instituto da Mobilidade Terrestre, a EDP e a Agência de Desenvolvimento Regional do Vale do Tua, que integra os cinco afectados.
O empresário Mário Ferreira terá manifestado, em 2021, o interesse de querer desistir do projecto. Contacto pelo Jornal Nordeste para perceber em que situação se encontra o SMT e se vai realmente desistir do projecto, Mário Ferreira não respondeu até ao momento. 
 
Governo não está interessado em que a região desenvolva
O troço Mirandela – Bragança fechou, há mais de trinta décadas, e, anos depois, Foz-Tua – Mirandela seguiu o mesmo destino. Agora, o comboio podia voltar a apitar, conforme prometido, entre a Brunheda e Mirandela, através do SMT, mas a maior parte da população não acredita que aconteça. É o caso de Constantino Guedes, de Frechas, no concelho de Mirandela, onde o comboio apitou tantos anos. E “andava sempre cheio”. Por aquelas paragens, “havia mais gente do que agora… e de que maneira”.
Assumindo que “a população não viu com bons olhos” o encerramento da linha, Constantino Guedes diz que ainda gostava de dar uma volta no comboio, até ao Tua, e almoçar por lá, mas já tirou os planos da agenda. “Não acredito que isto vá para frente”, esclareceu. 
Antes pouco acreditava e agora, desde que o operador turístico, Mário Ferreira, disse que queria desistir do projecto, deixou mesmo de acreditar. Mas isto não vai para a frente porquê? Simples, “política”. 
Para Constantino Guedes não há dúvidas de que os transmontanos “sempre estiveram esquecidos” e agora “está tudo pior”. “O Governo está interessado em desenvolver alguma coisa? Não, não está”, lamentou.
Considerando que foi um “erro” acabar com o comboio, vincou ainda que “aí para baixo (para as aldeias vizinhas) não há como ir”. Claro que há autocarro, mas só passa duas vezes por dia, sendo que chega apenas à localidade à frente de Frechas, Cachão. Também liga a população a Mirandela mas “não é a mesma coisa”.
Ora, assim, está visto que o comboio faz falta mas o regresso prometido, ainda que até se acredite nele, “não basta”. “Só para ir até à Brunheda? Isso não é nada. Havia de ir até ao Tua e ter ligação com a linha do Douro”, afirmou, lembrando que noutros tempos ia e vinha, no mesmo dia, ao Porto, a consultas. 
Esta ligação traduzia “investimento a sério, como fizeram os espanhóis”.
Pois é, nos últimos anos, os nossos vizinhos fizeram totalmente o contrário do que se fez em Portugal. Em vez de encerrarem os caminhos de via estreita arranjaram-nos e inauguraram mais quilómetros deles. E aqui, porque se fez o contrário? “Porque os nossos governantes não prestam”, considerou Constantino Guedes.
 
“Governai-vos”
Maria Delfina, da mesma localidade, também não acredita no regresso do comboio. “O comboio, até à Brunheda, e, depois, os passeios de barco, dali até ao cais da barragem… era bonito. Mas o projecto, na minha vida, não será implementado”, esclareceu, dizendo acreditar, com pena, que não volta a ver o comboio passar ali.
Vincando que “os governantes só pensam em coisas lá para baixo, para as grandes cidades”, também considera que são questões ligadas à política que não deixam avançar o sistema de mobilidade e que os próprios políticos só se lembram destas gentes do Interior na época de eleições. “Só nos querem para o voto. De resto, pensam ‘governai-vos’”, lamentou.
Maria Delfina não acredita que o SMT se implemente mas, mesmo que se efectivasse, não era, de todo, o que fazia falta. Ligar esta população à linha do Douro “seria o ideal” mas “não será fácil”.
 
Plano “é um bem para a região”
Manuel Ramos, também de Frechas, tem outra perspectiva completamente diferente, mais positiva. Assume que foi uma “péssima ideia” acabar-se com o comboio e a “região Norte necessita e merece que activem a linha do Tua”. E considera que é isso mesmo que vai acontecer. “O plano prometido satisfaz e é um bem para a região. Se activarem até Bragança melhor ainda”, assumiu, dizendo que os atrasos se devem apenas a “burocracias”, mas nada está condenado.
Para Manuel Ramos só falta que alguém do Governo assuma e diga quem é a entidade que fica responsável pela manutenção da linha. 
Sendo natural de Frechas, mas tendo vivido quase toda a vida em Lisboa, Manuel Ramos está mais habituado que os que ali residem a ver as coisas acontecer, a ver desenvolvimento, comboios, metros, autocarros e até aviões com fartura. Poderá ser por isso que tem outra atitude mais positiva. “Quero-me transportar novamente na linha do Tua. Quero ir ao Porto, comer umas tripas, mas quero ir de comboio, portanto, isto é para ontem”, vincou, assumindo que acredita neste projecto mas que é preciso mais do que isso.
 
“Muita tristeza”
Maria Madalena Almeida era utilizadora assídua do comboio. Vive em Frechas e nos tempos de escola ia de comboio até Mirandela, onde estudava.
Quando a linha fechou confessa que sentiu “muita tristeza”, porque “nos levam tudo daqui, as coisas mais importantes e que nos fazem falta”. “Não nos deviam ter tirado o comboio, é uma coisa muito importante para nós”, afirmou.
Ainda assim, é das poucas pessoas que acredita que a linha ferroviária vai voltar a ter uso. “Eu tenho um pressentimento que ainda vamos ter outra vez o comboio”, adiantou, até porque considera que ainda seria utilizado por muita gente que não tem transporte e precisaria de ir a Mirandela. 
Lembra os tempos de “solteira”, quando ia até à estação ver o comboio passar, com nostalgia. “Era muito bonito, era muito divertido. Eu tenho muitas saudades do comboio, quem me dera que tornasse a vir”, disse com um sorriso nos lábios, afirmando que se voltar a apitar na sua terra, “voltava a andar” só para matar as saudades. 
 
O maquinista
Tem 84 anos, mas a memória ainda não o atraiçoa. Ramiro Ribeiro foi maquinista durante 30 anos, seis deles na linha ferroviária de Bragança. 
Lembra-se bem dos tempos em que as carruagens iam cheias e em que os turistas se deixavam atrair pela beleza da paisagem do Vale do Tua. “Aqueles 15 quilómetros que havia entre a Brunheda e o Tua era uma linha espectacular que atraía turistas”, disse. Mas a “modernização dos transportes” vieram “dar cabo do comboio”. “O comboio deixou de ter passageiros, via-se que os comboios andavam vazios”, contou, realçando que chegou a uma altura que a procura já não era suficiente e, por isso, deixou de compensar para a CP. 
Mas que o comboio faz falta, disso não tem dúvidas, agora se vai voltar, isso já não acredita. “Não acredito que eles ponham o comboio a circular aqui”, disse convicto. 
“Uma pena”, porque podia levar muitas pessoas a Mirandela. “Aos fins-de-semana tínhamos aí dias de 200 passageiros que vinham almoçar ao Tua e do Tua iam a Mirandela”, lembrou. 
Veio trabalhar para a linha de Bragança em 1982. Reconhece que nessa altura a linha já estava muito degradada quando encerrou, em 2008. “Era preciso muito cuidado, porque com as chuvas, os temporais, havia desabamento de barreiras, de pedras, tinha que ir sempre vigilante”, contou. 
 
“A única solução para o SMT é ele funcionar”
Neste momento, para que o SMT se transforme em realidade, já foi feito um investimento de 17 milhões de euros, ao longo dos últimos cinco anos, a par e passo do aproveitamento hidroeléctrico da barragem, nomeadamente em obras de requalificação e de segurança da linha. 
O sistema depende de uma Declaração de Impacte Ambiental (DIA), que previa a sua entrada em funcionamento, previamente a haver o licenciamento do aproveitamento hidroeléctrico. Mas isso não aconteceu.
Segundo explicou o presidente da Agência para o Desenvolvimento Regional do Vale do Tua, Pedro Lima, “falta passar o crivo do licenciamento”.
Pedro Lima, que compreende que a população já não acredite que o comboio regresse, sublinhou que, como presidente da agência e da câmara de Vila Flor, “só há uma solução: o SMT ser uma realidade”. Caso contrário, “será muito complicado explicar a todos os envolvidos como é que existe uma barragem, que depende de uma DIA, que específica o SMT e este não funciona, mas a barragem funciona”. Necessário será também explicar porque se gastaram todos estes milhões de euros na requalificação e reestruturação da linha, num comboio, num barco e em todas as infra-estruturas necessárias.
Assim, para o presidente está-se “muito perto de se conseguir desbloquear a situação”. E o que falta? Uma “tomada de posição convicta do Ministério das Infra-estruturas para se ir desbloqueando todas as situações que forem surgindo”.
Pedro Lima, que diz que única solução para o sistema de mobilidade é ele funcionar, questionado sobre quanto tempo podem ainda as pessoas aguardar, não aponta nenhuma data. Assume que essa é uma pergunta que ele mesmo tem vindo a fazer ao Governo. “Pedimos um cronograma que seja coordenado com as instituições que têm a tutela sobre o licenciamento da linha e meios circulantes e que seja realista, esclareceu, avançando que aguarda “serenamente” por uma reunião como o novo ministro das Infra-estruturas.
Quanto às reclamações da população, no que toca à ligação ferroviária antiga, diz que as compreende, mas é preciso ver que “a partir do momento em que se constrói uma barragem, que inunda mais de 20 quilómetros de linha, essa hipótese fica quase fora da equação”. “O que ficou decidido na DIA, para compensar as populações e território, foi este sistema de mobilidade híbrido, que penso que será uma solução que tem mais interesse a nível turístico, embora não perfeita nem tão rápida para uma deslocação quotidiana”, acrescentou ainda.
Agora, que a barragem está construída, que a linha, tal como era, não volta, o presidente da agência assumiu que, “mais importante do que considerar o que poderia ter sido, devemos considerar o que vai ser, o que está perante nós e ao nosso alcance”. 
 
“Culpado só tem um nome, Estado Português”
Recuamos a Outubro de 2006, quando surgiu o Movimento Cívico pela Linha do Tua. Um grupo de pessoas decidiu lutar pela vivência da linha e impedir que a construção da barragem de Foz Tua fosse mesmo uma realidade. Criaram uma petição, que foi discutida na Assembleia da República, deram o seu parecer sobre a construção da barragem, acompanharam e denunciaram o processo, mas de pouco valeu. Em 2011 a barragem começou a ser construída. 
Restava que o Sistema de Mobilidade do Vale do Tua fosse cumprido e começasse a funcionar em 2017, quando a barragem também começou a produzir energia, só que passados seis anos a situação continua igual. 
“O culpado do Plano de ‘Imobilidade’ do Vale do Tua ainda não estar implementado só tem um nome, é o Estado português. É o Estado que continua a boicotar a reabertura da linha do Tua”, afirmou o fundador do movimento.
Daniel Conde considera que “ninguém, absolutamente ninguém, desde a tutela, ministério, até à Agência de Desenvolvimento Regional do Vale do Tua sabe em que pé está o plano”. 
Até agora a linha ainda não foi licenciada, mas esse não é o único entrave para o SMT avançar. De acordo com o activista, também o comboio turístico, coberto por uma tenda branca, na estação de Mirandela, “não está homologado”. “Padece de vários problemas e não foram corrigidos ainda. Falta-lhe potência, tem varandins demasiado alto e podem escorregar crianças, segundo sei oficiosamente, a própria cabine de condução da locomotiva não tem manómetros para indicar se as carruagens atrás vão a frenar”, apontou. Além disso, considera que é “preciso mais material circulante”, visto que a locomotiva e as automotoras do Metro de Mirandela não são, na sua opinião, suficientes. 
Em Dezembro de 2018, as automotoras do Metro de Mirandela pararam de circular com a justificação do início das obras na linha. Prometia-se que seria apenas durante “seis meses”, mas até agora continuam sem circular. “As automotoras estão num estado deplorável, ainda não passaram também pelas grandes revisões a que estão sujeitas”, disse. 
E o comboio continua sem apitar em Mirandela e Brunheda. “Nós exigimos que o comboio volte à linha do Tua, porque há protocolos assinados para isso, há assinatura do Estado para o regresso do comboio à região e o Estado está a falhar. O Estado é o único interveniente em todo este processo que nunca esteve interessado que chegasse a bom porto”, sublinhou.
Daniel Conde não tem dúvidas que a retirada do comboio da região é um entrave ao desenvolvimento e contribui para a perda de população. “A perda de quaisquer serviços alimenta um ciclo vicioso, não há aqui serviços portanto não quero habitar aqui, e do outro lado, quem olha, vê cada vez menos pessoas na região e portanto pensam que não precisamos assim de tantos serviços. E andamos neste ciclo vicioso há décadas e por isso é que a região continua a perder população”. 
E com o Sistema de Mobilidade do Vale do Tua encravado, são milhões de euros que se perdem. “Imaginemos que todos os anos vinham 50 mil visitantes ao Vale do Tua, imaginemos que faziam uma refeição aqui na região, levavam produtos regionais e uma fracção destes 50 mil também pernoitariam uma noite na região. Chegamos facilmente a um cálculo, que todos os anos o Vale do Tua está a perder 1,5 milhões de euros de receitas. Se fizermos as contas desde que o plano foi concessionado à Douro Azul até hoje, o Vale do Tua já perdeu 10,5 milhões de euros”, referiu. 
 
 
Panorama
2008- Encerramento da linha do Tua
2011- Início da Construção da Barragem de Foz Tua
2016- Atribuição da concessão do Sistema de Mobilidade à Douro Azul 
2017- Conclusão das obras da Barragem de Foz Tua 
2017 e 2018- Obras na linha do Tua
2020- Estabilização dos taludes e reabilitação da linha entre Brunheda e Mirandela
2021- Mário Ferreira manifesta querer desistir do projecto 
2022- Antigo ministro das Infra-estruturas Pedro Nuno Santos disse estar a trabalhar numa solução
2023- ?
Jornalista: 
Carina Alves / Ângela Pais