“Se não fosse a castanha muitos não viveriam no meio rural, porque não tinham meio de subsistência”

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Qua, 03/03/2021 - 11:54


Jorge Lage tem 72 anos e é natural de Chelas, no concelho de Mirandela. Terra que deixou com 11 anos. Licenciou-se em História, no Porto. O carinho pela sua terra e por Trás-os-Montes sempre o acompanharam nas suas pesquisas. Já publicou seis livros e o sétimo vem a caminho. O seu trabalho direcciona-se para a castanha, a sua história, cultura e tradição, o que lhe valeu o Prémio Literário Prof. Doutor Adriano Moreira, atribuído pela Casa de Trás-os-Montes e Alto-Douro, em Lisboa.

Que importância tem receber o Prémio Prof. Doutor Adriano Moreira?

Passei a vida, sobretudo os últimos 20 anos, a investigar pelo país fora, por minha conta e risco. No final olhei para trás e achei que tinha uma certa dose de loucura pelo trabalho que desenvolvi. Hoje já não o faria, porque foi muito difícil. Foi sobretudo a memória da nossa gente, dos que partiram, dos mais velhos e temos que preservar memória imaterial sobre a castanha e o castanheiro. O prémio surge como uma atenção da Casa de Trás-os- -Montes e Alto Douro. Dão-me este reconhecimento que, no fundo, também é de todos os amigos, também da nossa gente, porque sem essa gente que encontrei nas aldeias, em lares e outros sítios, eu não conseguia fazer este trabalho.

É um dos especialistas da castanha, cultura, história e tradição associado ao fruto e as obras que tem vindo a publicar têm a ver com a castanha. Porquê?

No final da década de 90, eu via que nas feiras e festas da castanha só havia castanha em verde, não havia castanha assada, nem cozida, nem castanha em bolos, então todos os anos insistia com as escolas para fazerem esse trabalho. Como vi que ninguém o fazia, entendi que tinha que começar eu. Comecei a juntar material num caderno e era tanto que pensei que podia dar um livro. Falei com a Câmara Municipal de Valpaços, apresentei o projecto e eles mostraram-se interessados. A partir daí quis sempre fazer melhor. Fazia um livro, via que faltavam coisas importantes e fazia outro livro. Já escrevi seis livros, alguns com várias edições. O último foi uma antologia, em que desafiei mais de 80 escritores de todo o país a fazerem textos sobre a castanha e sobre o castanheiro, porque é um fruto importante na vida rural portuguesa, sobretudo nas partes de montanha. Eu estou convencido de que se não fosse a castanha muitos não viveriam no meio rural, porque não tinham meio de subsistência e a castanha ajuda-os a sobreviver no meio rural. Além disso, a castanha livrou da morte, em anos de fome, muitas pessoas. É um fruto muito importante, é um fruto mágico.

Como desempenhou todo o trabalho de pesquisa ao longo destes anos?

Quando olho para aquilo que faço, depois vejo que podia fazer mais e melhor. E fui fazendo mais e mais. Quando estou num projecto não desisto. Eu nunca desisto por dificuldades, há sempre um caminho. Fui investigando, visitei cerca de 80 lares, centros de dia, visitei muitas aldeias, muitos agricultores, viajei de avião, tudo às minhas custas. E surgiram seis livros e quero fazer um sétimo, porque ficam sempre coisas para trás e é bom que fique tudo publicado, para outros poderem dispor delas e até fazerem coisas melhores. Quando publiquei o primeiro livro, os cozinheiros, sobretudo da Escola Superior do Estoril e de Castelo Branco, telefonaram-me a dizer que o livro passou a ser obrigatório. Começaram a ver que a castanha é importante para a gastronomia e, no final da década de 90, começaram a dar atenção à castanha, em caldos, em pratos e em doces. É pena que não se explore a mais-valia da castanha, como fazem por exemplo os italianos, que são os principais consumidores europeus. O meu projecto também pretendia que, pelo menos, 30% do que se produz de castanha em Portugal, pudesse ser consumido cá, para não estarmos dependentes só da exportação.

Gostaria que grande parte da castanha ficasse cá em Portugal?

Uma percentagem, cerca de 20 a 30% fosse consumida cá. Se ficarmos dependentes só da exportação depois, se houver um ano em que, noutro sítio, tiverem muita castanha e não quiserem a nossa, nós ficamos com a castanha toda. E com um maior consumo cá, já havia um equilibro. Já começa a haver pequenas unidades da transformação da castanha e ao fazermos a transformação tiramos mais-valias. O único sítio onde se tem feito, em termos industriais, marron-glacé, que é o expoente máximo da castanha, a castanha caramelizada, tem sido em Ourense. Se nós produzíssemos alguma coisa cá, fizéssemos farinha, fizéssemos castanha caramelizada, podíamos ganhar mais com a nossa castanha. Exportar em bruto tem um preço, transformada tem outro.

Na região fala-se também de um preço injusto que é praticado na venda da castanha…

As pessoas estão isoladas, não estão associadas e sempre houve os ajuntadores, aquelas pessoas que são os intermediários da castanha, que compra a castanha ao pequeno agricultor, mas já sabem a quanto a vão vender aos grandes grupos. Fazem preços que deixa o agricultor amarrado e isso custa-me porque, para mim, o nosso agricultor é sagrado, a nossa gente do campo é sagrada.

Dois dos seus livros mais conhecidos, um deles “Memórias de Maria Castanha” e o outro “Maria Castanha Outra Memória”, fala-me num sétimo livro. O que há para escrever?

Eu corri o país todo, o vocabulário é imenso, expressões, receitas e estamos sempre a descobrir coisas novas. Há sempre um provérbio ou outro, há variedades de castanha que nos escaparam, se calhar algum conto sobre a castanha, alguma receita e no final quero juntar esse restinho e fazer um sétimo livro. Agora já é mais uma coisa minha para acabar. Os dois livros da Maria Castanha é mais ao menos um compilar, a nível do país, da memória imaterial da castanha que não estava publicada em livros. E eu tentei fazer isso, porque percebi que esse trabalho não estava feito. A própria palavra Maria Castanha é uma heroína da idade média, da Galiza, e eu quis fazer-lhe uma homenagem e nela representar todas as mulheres do campo. A mulher foi sempre e continua a ser, no nosso mundo rural, a peça chave de uma casa. Para mim é a mais importante, porque ela parece que não está, mas está em tudo. E eu quis homenagear todas as mães, todas as mulheres que deram o seu melhor de si pelo nosso mundo rural, pelas gerações que já partiram, pelas que estão e pelas que hão-de vir.

Jornalista: 
Ângela Pais