Sex, 18/03/2005 - 12:43
No pequeno universo de Lagarelhos olhávamo-nos todos os dias, a toda a hora nos encontrávamos. Ainda hoje assim será, apesar da maioria da escassa população estar carregada de anos. Conversas de comadres, gargalhadas de raparigas a merecerem olhares cobiçosos dos rapazes, todos vivendo a sua meia-vida. Tempos maus, fracas colheitas, trigo e centeio a faltarem nas mesas, anos avaros até de maçãs. Tempos melhores, fartas colheitas, ameixas e cerejas em abundância, lenha cortada e engorda de porcos. Um mundo circular prenho de afectos, de amores, de zangas, de raivas, de pequenos e grandes ódios. Na pequenez dos meus anos tudo olhava, tudo ouvia, tudo dizia. Mesmo o que não devia ver, ouvir e dizer. Reparava nas raparigas e nas mulheres, suspendia-me a contemplar os seus penteados. A razão deste interesse residia na configuração desses penteados, os quais no entender dos meus olhos deviam ser causa de custosos trabalhos. Uma prima repuxava o cabelo para cima em ninho de pássaro, uma tia lustrava-o e deixava-o cair pelas costas, muito para além da cintura, umas vizinhas passavam manhãs a fazer tranças que todos os dias as desfaziam, após terem custodiado os porcos até às terras onde existia ferrã. A minha avó aprisionava os longos cabelos mais brancos que pretos num seguro puxo na nuca. Ainda completei a primeira-classe na formosa aldeia, durante meses convivi alegremente numa sala pequena com raparigas e rapazes repartidos pelas quatro classes, distribuídos em bancos corridos na primeira e segunda classes, e carteiras ferrugentas e ruidosas nas restantes classes. As idades variavam entre os seis e os catorze ou quinze anos. Os rapazolas ostentavam prenúncios de bigodes e buços, as raparigas redondezas perturbadoras. A professora, Dona Emília, uma professora tinha de ser dona, riscava bem os fartos e alvos cabelos. As minhas observações começaram por essa altura e continuaram nos anos posteriores nos períodos de férias. Na época o sabão e a água tinham pouco uso no corpo das crianças, o sabonete era coisa rara e apetecida pelas moças. Nos dias soalheiros o mundo da aldeia era uma nódoa nos lavadouros, enquanto as cabeças dos mais pequenos sofriam despiolhamento e caça às lêndeas. Os tufos de cabelos mereciam demoradas lavagens especialmente nos dias de festa, nomeados e de feira. Nesses dias os meus olhos demoravam-se ainda mais nas cabeças femininas. O ar muitas vezes não estava lavado, a limpeza escassa dos currais, da lojas e cantos assim o determinava, especialmente quando demorava a chover, os animais a viverem paredes-meias com as pessoas davam uma ajuda nesse sentido, por isso o ar não era purificado. Mas como limpar o céu? Confiava-se no vento. Um vento lavado e bem cheiroso no início da Primavera devido às flores. Alguns penteados apresentavam-se protegidos por redes, finas ou grossas, conforma a carteira das donas deles. Os caracóis davam encanto a muitos rostos, muito mais tarde soube que os cabelos separados por risca ao meio da cabeça e colocados em madeixas alisadas sobre as fontes, exibidos por senhoras de fora na festa do chaveiro do céu, se chamavam bandós, mais tarde ainda percebi a influência da majestosa amante de Luís XV, na arte de pentear das raparigaças emigradas em Lisboa, que também voltavam à nossa aldeiazinha lagarelhense pela mesma altura. A rapaziada ondulava os cabelos conforme podia e sabia, a brilhantina custava muito, o azeite substituía bem, no respeitante à minha irrequieta pessoa, o corpo merecia ser escarolado com água fria e sabão a arder nos olhos. O pente acertava a marrafa. Nada mais, a Dona Delfina abominava perfumes e águas em consonância. O aparecimento das bandoletes não pode ser esquecido, dado o seu uso a favor da domesticação dos cabelos. A missa em honra do Senhor São Pedro transformava-se numa montra de penteados e seus arremedos. Cabelos curtos e frisados, alisados ou a meio disso, em canudos, com coques e rolos, com ou sem ganchos, em tufo ou pura e simplesmente seguros por uma fita de seda de gorgorão ou de nastro. Enquanto decorria a procissão o esforço provocado pelo canto e as orações desfaziam certos penteados para desgosto das possuidoras. No aperto, os ditos ganchos e as travessas de tartaruga operavam prodígios. O Santo lá do cimo do andor tudo contemplava, tudo via. Estou convicto de ele esboçar um sorriso sempre que uma mocetona afogueada desprendia os cabelos deixando-os esvoaçar livremente, escondendo o rubor debaixo deles. O suor e os perfumes vindos através do contrabando faziam soltar notas olfactivas almiscaradas. Gostava daquelas essências. Na devida altura percebi porquê!
PS. Talvez fosse interessante a senhora Câmara fazer uma exposição de fotografais onde pudéssemos contemplar os penteados do século passado. Muita gente guardou tais documentos. A história também se faz deste modo.