Pandemia põe a nu fragilidade do sector da cultura

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Ter, 13/04/2021 - 11:06


A cultura tem vindo a atravessar uma das fases mais complicadas do sector. A pandemia veio levantar o véu e mostrar o quão frágil é este sector

Ramiro Pires, o mágico brigantino de nome artístico Orimar Serip há 44 anos que anda neste mundo artístico e disse que nunca lhe tinha acontecido estar tanto tempo sem espectáculos, como em 2020. Foi obrigado a reinventar- -se, já que não teve apoios nenhuns. O online e o computador substituíram os palcos e passou a ser o seu meio de trabalho, mas rapidamente percebeu que é “completamente diferente”. “Não há o cheiro do pó do palco, não se consegue ouvir o respirar do público, a reacção do público, o olhar de querer saber mais, não se consegue ver a alegria de uma criança. Não sei explicar, é um vazio imenso”, contou. No início a afluência de pessoas ainda era alguma, mas agora é “muito pouca”, porque as pessoas já se cansam de “olhar para o computador ou para o telemóvel”, porque é “diferente de estar numa sala de espectáculos”. O artista reconhece que a sua situação poderia ser pior, se não tivesse também outro fundo de maneio. Ainda assim, foi uma machadada nos bolsos, já que teve que “fazer malabarismos para conseguir aguentar”. “Tenho outra profissão e vou ganhando mensalmente, mas penso nos meus colegas que vivem só da vida artista e é realmente doloroso”, disse. Ramiro Pires falou ainda de não se sentir valorizado na sua terra, Bragança. “Eu só tenho promessas da autarquia. Sou presidente da Associação em Nome do Grito e estou à espera de uma sede há muito tempo. Neste momento estou sozinho, porque os actores foram embora porque já não acreditavam nessa possibilidade”. O artista considera que a cultura já vinha atravessar dificuldades e que a pandemia veio “agravar” a situação. “Um país sem cultura é um país de analfabetos e eles [Governo] não conseguem ver isso. Abrem determinadas coisas, há festas para determinados partidos, e para a cultura não há nada”. Da magia ao mundo da pintura e das artes plásticas, chegamos até à pintora Balbina Mendes. É natural de Malhadas, no concelho de Miranda do Douro, mas vive em Vila Nova de Gaia. A pandemia não lhe afectou a imaginação e, por isso, durante este tempo de confinamento conseguiu manter a criação e produção. Mas o afastamento público foi para si o mais “penoso”. A exposição “O Rosto, Máscara Intemporal” ficou grande parte do tempo fechada entre quatro paredes, longe do olhar das pessoas. “Tinha a exposição em Bragança quando começou a pandemia. Daí passou para Mirandela onde teve que ser adiada. Foi depois reaberta mais tarde, mas online. Depois esteve em Mogadouro onde teve pouquíssimo público e agora em Freixo de Espada à Cinta tem estado fechada. Abriu ao público porque o centro de vacinação é onde está a exposição e foi prolongada até 9 de maio”, disse. Para a artista a arte sem apreciação não é a mesma coisa, porque “as obras são concebidas para que sejam desfrutadas pelo público”. “A venda nem é propriamente o mais importante para mim. Felizmente vai se vendendo uma ou outra peça que vai dando para os gastos, mas isso não é o mais importante. Para mim o mais penoso é que eu invisto muito de mim em cada pintura, em cada obra. A minha pintura não é de discussão fácil e rápida. Esta exposição tem cerca de 30 obras. Tanto investimento de mim e não tenho público para ver e apreciar”, lamentou. A mirandesa reconheceu que a pandemia “é o parente pobre de todas as áreas de intervenção da sociedade” e a situação pandémica veio mostrar o seu lado frágil e “causar constrangimentos” aos artistas. Até porque até agora também não recebeu qualquer tipo de apoio. Aguarda a resposta de duas candidaturas. Na sua opinião, o problema está no Governo não ver na cultura uma alavanca económica. “Eu penso que os organismos oficiais ainda não viram de verdade que a cultura também pode ser uma alavanca para promover a economia de uma outra forma, indirectamente e directamente”, concluiu. Só agora nesta segunda fase de desconfinamento os museus puderam voltar a abrir. Estiveram fechados quase três meses. Apesar deste regresso, Amândio Felício, director do Museu Abade de Baçal, em Bragança, disse que a procura tem sido “residual”, o que o leva a crer que será idêntico ao primeiro desconfinamento, em Maio do ano passado. Reconheceu que é um “aspecto muito positivo” poder voltar abrir portas, mas as expectativas não são altas. “Ainda vivemos um período muito complicado em que as visitas a espaços culturais e museus é algo que por parte das pessoas é visto como uma actividade ainda não prioritária”, disse. Para além disso, o público mais recorrente neste museu foi afastado, as crianças e as pessoas de terceira idade. As actividades direccionadas para este público ainda não se podem realizar, mas o director estima que a partir da segunda quinzena de Abril o cenário mude. “Os concertos, as apresentações de livros, as conferências e os colóquios na situação actual não estamos autorizados a realizar. Estamos a falar de um público que deixa de ter acesso aos bens culturais e isso é algo que nos deve fazer reflectir sobre a frequência de visitas a museus e realização de actividades culturais proporciona ao desenvolvimento cultural e social”, afirmou. Neste momento, as pessoas podem visitar o Museu Abade de Baçal e ver a exposição permanente, uma colecção do fotógrafo Duarte Belo, sobre a região do Nordeste Transmontano, colecções de objectos da Diocese de Bragança-Miranda e das artes plásticas de pintura e ainda uma colecção de Almada Negreiros. Tal como os museus, também os teatros estiveram fechados e só abrirão a partir de 19 de Abril. Pelo menos é essa a previsão do Governo para a terceira fase de desconfinamento. E a partir daí a Filandorra, uma companhia de teatro com 35 anos, já vai finalmente voltar a actuar. Depois de um ano com os actores em Lay-off, o director artístico da companhia falou do tão ansiado regresso e de como este ano marcou psicologicamente as pessoas que vivem dos palcos. David Carvalho disse ter conseguido manter os 15 actores efectivos que fazem parte da Filandorra, graças ao apoio da rede de 20 municípios com quem têm parceria. O apoio do Governo também disse ser fundamental, mas reconheceu que foi “tardio” e “lento”. O problema não esteve na situação económica, mas no estado emocional. “Teve um prejuízo emocional os actores terem que estar fechados em casa e não poderem fazer espectáculos”, admitiu, realçando ainda que a criação também foi outra das “angústias”. A companhia actua em vários distritos, nomeadamente Bragança e Vila Real, e é conhecida por realizar a procissão dos Mil Diabos à Solta, em Vinhais, a Paixão de Cristo, em Vila Real, e a Noite das Bruxas, em Montalegre. “E este ano temos que esperar com paciência e que isto passe e que reencontramos outra vez o valor da cultura e do teatro. Porque o teatro e as actuações só funcionam com o contacto directo com o público”, afirmou o director artístico. Apesar de a Filandorra ter conseguido manter o barco, David Carvalho entende que a situação não foi igual para todos, visto que “os vários governos nestas últimas décadas não souberam ter em atenção este sector”. “Há um conjunto de trabalhadores independentes que ainda estão na situação ridícula de não receberem nada. Há muita gente, sobretudo na área técnica e que não estão e companhias fixas, que estão com problemas graves de subsistência e estão no limite da fome”, frisou. Segundo o responsável, a cultura atravessou também por uma crise sistémica, uma vez que o Ministério da Cultura tinha colocado “as companhias elegíveis fora do financiamento e tinha apoiado só Lisboa”. Mas o paradigma mudou e a 15 de Janeiro a Filandorra ficou a saber que todos os seus projectos, previstos até 2022, foram aprovados. Ainda assim há um longo caminho a percorrer, como por exemplo a rede de Cineteatros que há 5 anos aguarda por ser aprovada. Até agora ainda não saiu do papel, mas a 20 de Abril será levada à Assembleia da República para finalmente ser aprovada. “O Ministério da Cultura, lamentavelmente, não foi tão eficaz como se desejaria ou como prometia ser quando esta legislatura iniciou”, concluiu David Carvalho. Em Bragança, o Teatro Municipal dá as boas vindas aos espectáculos a 21 de Abril com a peça “Democracy has been detected”. Devido ao momento de incerteza relativamente à abertura destes espaços, o teatro tem uma agenda bi-mensal, para que não volte a cair no cancelamento dos espectáculos e concertos agendados. O público pode esperar duas estreias mundiais, uma do Teatro Nacional de São João e outra da companhia de dança contemporânea Olga Roriz. “Agora não se consegue programar a longo prazo. Está previsto que a 19 de Abril a reabertura dos espectáculos de palco, mas ainda não temos nenhuma certeza”, disse o director. Ainda assim, João Cristiano Cunha considera que é preciso regressar à actividade já que há muitas pessoas que trabalham no sector e até o público precisa deste regresso para manter a saúde mental. O director está positivo com este regresso e acredita que a sala vai esgotar, ainda que a lotação esteja reduzida a 50por cento, ou seja, 200 lugares. “As pessoas estão um bocadinho sedentas de actividades culturais, porque são essenciais para o equilíbrio”, disse, salientando que, na sua opinião, os espaços culturais não são foco de contágio. João Cristiano Cunha alertou ainda que os bilhetes comprados para os espectáculos que foram cancelados e que estão agora a ser reagendados não são válidos e, por isso, pode ser pedido o reembolso. Para diminuir a propagação de contágio da Covid-19 o Governo também decidiu fechar cafés, bares e discotecas. Os empresários do sector da música foram arrastados pela onda. Ricardo Durval, mais conhecido como DJ Durval, está também parado há mais de um ano, porque não pode actuar em bares, discotecas e festivais como fazia habitualmente. Teve que arranjar outras alternativas enquanto produtor e aproveitou este tempo para promover o seu trabalho e reorganizar eventos, com a esperança de que ainda se possam realizar este ano. Apesar de ter outro trabalho, disse ter perdido alguns milhares de euros por causa da pandemia. Por ano, fazia cerca de 120 espectáculos, que agora estão reduzidos a zero. “Não está fácil para todo o mundo da música e principalmente para os músicos e DJ’s. Para quem só vive deste sector está muito difícil”, referiu. Ricardo Durval considera que o Governo tem que começar arranjar uma alternativa para dar rendimentos aos que trabalham da música, porque se assim continuar “vai haver muita desgraça” para amigos e colegas de trabalho que vê estarem a passar por dificuldades. “Tem que haver uma alternativa para o sector da música e da cultura, porque senão vai ser muito difícil suportar mais um ano sem vencimentos e sem apoios”. A solução para o DJ de Alfândega da Fé passa pela realização de eventos ao ar livre, com medidas de segurança. “O governo vai ter de apoiar a 100 por cento estes empresários, se Balbina Mendes na exposição “O Rosto, Máscara Intemporal” não arranjarem alternativas”

Jornalista: 
Ângela Pais