Ter, 22/03/2005 - 17:11
A concepção de herói, quer o encaremos na perspectiva do Fantástico, da banda desenhada, ou do mundo real, é a de alguém que se apresenta, aos olhos dos simples mortais, moral e humanamente, como sendo um repositório de virtualidades, aliadas a actos de inquestionável bravura, abnegação e coragem, sempre ao serviço do Outro.
Um defensor, por consequência, das mais sublimes causas, e movido, no limite e na plena consciência do risco, por um total desprendimento pelas questões materiais, sem qualquer tipo de obstinação pelo reconhecimento social.
A introdução deste tema serve, acima de tudo, para confrontar a mítica figura tida como modelo intemporalmente venerado com a nova geração de heróis, que a nossa sociedade, hoje, com alguma ligeireza, reconhece.
É deste acervo de novos redentores que eu destaco uma de muitas espécies que por aí existem, por me parecer, pelas circunstâncias em que é impingido, a mais mediática: os militares da G N R que, ao abrigo do tratado que nos vincula ao organismo internacional NATO, participam em missões de paz no Iraque.
Não é minha intenção ( longe disso ) questionar nem o envolvimento das tropas portuguesas nesta guerra, nem, tão – pouco, a decisão “amadurecida” daqueles que, voluntariamente, se entregaram a tamanha e tão delicada empresa. Apenas, e com o devido respeito, pretendo sublinhar que todos quantos fizeram parte dos contingentes militares portugueses no Kosovo e na Bósnia, e fazem, agora, no Iraque, não obstante o “mérito” que possam ter, estão longe de preencher os requisitos dos heróis romanceados. Condição, note-se, de forma alguma reclamada por eles, mas pela própria comunicação social, que, no mais aparatoso e sensacionalista dos recortes jornalísticos, os modela numa aura de triunfalismo.
E o que nos pode, pois, ajudar a perceber o que distingue verdadeiramente uns dos outros (heróis e não – heróis ) está explícito nas palavras avulsas e sinceras da esposa de um GNR, envolvido no “desafio do Iraque”, em entrevista a uma estação televisiva, quando lhe foi perguntado sobre a principal razão por que o marido, de regresso a casa, se havia disponibilizado para tão “arriscada” missão: «Achámos que esta foi uma boa oportunidade para ajudar a pagar a casa que devemos ao banco».
É evidente que não posso interpretar tal desabafo como revelador dum sentimento generalizado. Acredito, isso sim, que haja quem, legitima e honestamente, anseie por uma vida mais confortável e desafogada, não se dando ao luxo de desperdiçar a oportunidade de, “ num - três – em – um”, servir a pátria, ganhar uns tentadores mil contos mensais(?) – valor que corresponde às patentes mais baixas – e a possibilidade de rápida e automática ascensão na carreira. Como admito, também, que possa haver quem seja impelido pelos três motivos, isoladamente.
Não podemos negar que esta missão envolve, para os nossos militares, algum risco, conquanto se diga estarem longe das zonas de combate, limitando-se o seu papel a meras ( mas importantes ) acções humanitárias.
Mas se o critério do “risco” é, em relação aos GNR’s, suficiente para granjear o estatuto de Cavaleiros da Távola Redonda e a consequente contrapartida remuneratória ( diga-se, bastante aliciante ), o que dizer, por exemplo, dos heróis e heroínas anónimos que o dia – a – dia revela, e a sociedade não lhes atribui o devido valor? Neste grupo, que sublevo na minha nomeação para a categoria de heróis do quotidiano, mas sem o natural enlevo e graciosidade que caracterizam os convencionais, encontram-se os portugueses que foram arrastados, sem qualquer escolha, para a guerra do Ultramar, muitos deles pagando com a própria vida, sem glória e a troco dum mísero pré; os bombeiros voluntários, que, na luta desigual com o fogo, quantas vezes lhes é negado o bem mais precioso; os polícias que patrulham as Covas da Moura e os Bairros S. João de Deus deste país, cujo regresso a casa, com vida, é sempre uma incógnita; a professora, numa alusão simbólica à classe, que, no ano lectivo anterior ( ? ), depois de ter sido sovada, pela mãe de um aluno, em plena aula, na Escola Primária das Cantarias, em Bragança, teve a coragem de levar o caso a tribunal, mesmo sabendo que o retorno, vindo de quem vinha, eram as habituais represálias; por último, a funcionária da Resin, que uma câmara de televisão, na sequência das várias e fastidiosas reportagens que tinham por pano - de – fundo as baixas temperaturas que se registaram em Bragança, no mês de Fevereiro, captou, às cinco da manhã, a limpar as ruas da cidade, num frio cortante de 7 graus negativos. Esta senhora, provavelmente, ganhará pouco mais do que o salário mínimo nacional.
Pena é que a maior parte dos heróis não convencionais, e que pertencem a esta selva humana, não tenham oportunidade, através duma qualquer missão, de aceder às mais elementares e básicas das necessidades.