Ter, 22/03/2005 - 17:36
Os franceses têm uma expressão animada para descrever o queijo de massa mole e espalhável: “il s´abandonne”. Abandona-se, vai por aí fora. Arrama-se, como diria alegremente o bom do transmontano, sempre curioso perante a perspectiva de ver esparramada uma substância capaz de manifestar qualquer tipo de força ou vontade. Abandonando-se.
Que, como o meu dicionário de sinónimos tão eficazmente traz escarrapachado, significa: “dando-se, entregando-se, retirando-se, desleixando-se”.
E é aqui, neste mesmo parágrafo, caro leitor, que entra o Teatro Municipal de Bragança. Não porque este mui nobre equipamento se tenha desleixado ou retirado de onde o conhecemos – pelo contrário: mantém-se afincadamente atarraxado à Praça Cavaleiro de Ferreira, continuando, por isso, a beneficiar de uma privilegiada visão panorâmica, vislumbrável do seu estonteante e sofisticado interior, onde continuam a ser prestados os mesmos louváveis serviços em prol da cultura concelhia e distrital. Sendo que esse excesso de zelo cultural poderá explicar a indiferença manifestada relativamente aos prosaicos serviços de um bar. Cujos efeitos são certamente menos cerebrais do que uma peça de Samuel Beckett, mas mais capazes de acalmar uma garganta ressequida ou de satisfazer um espírito carente de cafeína. E como o Teatro Municipal continua, há meses, sem os préstimos de um bar ou cafetaria, conclui-se que – porque a situação perdura – também aqui não tem havido desleixo relativamente à circunstância deficitária. Está a seguir o meu raciocínio, paciente leitor?
Há cerca de três meses, nestas mesmas páginas do nosso Jornal Nordeste, fazia eu referência ao embasbacante sub-aproveitamento de que este equipamento é um alvo indefeso. Com diversos espaços interiores e exteriores por ocupar e rentabilizar, o Teatro Municipal está, actualmente, reduzido a albergar um ou dois espectáculos semanais, sem qualquer outro tipo de actividade. Apesar de, como é ciosamente referido no folheto informativo, a construção do Teatro ser “um projecto que a autarquia assumiu (...) procurando responder aos anseios mais antigos e profundos dos agentes culturais, da população em geral, da cidade e da região”.
A funcionar há cerca de treze meses, o Teatro Municipal foi, na semana passada, objecto de interesse por parte da comunicação social regional que – em formato de balanço – deu a conhecer a realidade pouco eufórica da taxa de ocupação deste espaço, que estaria reduzida a metade, tendo diminuído em 25 % relativamente ao ano passado. Ou seja: nada entusiasmante, mas muito previsível.
É certo que o factor Novidade tem um prazo de validade normalmente curto e que, neste caso do Teatro, expirou logo a seguir ao musical “Amália”, findo o qual se percebeu que já não havia brigantino que não se tivesse refastelado, pelo menos uma vez, em qualquer das sofisticadas cadeiras vermelhas.
Estava feito o baptismo da atractividade, confirmada a eficiente funcionalidade, passada a prova de fogo da “culturalidade” eufórica. Pronto! E os brigantinos começaram a abandonar-se, a arramar-se pelos familiares sofazinhos das suas saletas. De telecomando em acção.
Bom, eu sei, persistente leitor, que isto não é assim tão linear. E que aqueles que poucas vezes frequentaram o Teatro mantêm firme a sua convicção de que a programação é elitista – embora, valha-nos isso, ainda não reputada de sulista – abjurando de tantos nomes difíceis de pronunciar e tantas peças de teatro que nunca acabam em casório. Mas a verdade é que não se pode apreciar aquilo de cuja realidade não se suspeita, nem ter consciência do que não se conhece, nem tão-pouco gostar do que não se sabe que existe. E já o imortal Eça de Queiroz garantia a necessidade imperiosa de “educar o gosto”, dando a conhecer perspectivas capazes de fazerem a diferença entre aquilo que temos e tudo quanto podemos vir a descobrir.
Há, julgo, uma questão importante relativamente ao “arrefecimento” do Teatro Municipal, que passa pela deficiente divulgação e promoção dos espectáculos. Calculo que os fundos disponíveis estejam com o fundo à vista, mas julgo que seria fundamental que houvesse, por parte das rádios locais, por exemplo, uma cooperação no sentido de que, semanalmente, o público fosse devidamente informado sobre a programação em causa – não só através da difusão dos conteúdos, como também por entrevistas aos músicos, actores, artistas em geral e entidades ligadas à produção dos espectáculos.
Não se desvalorize o poder da divulgação, como forma de arrebanhar público! Que eu bem recordo o sistema montado pelo INATEL para divulgar os espectáculos trazidos do Leste pela estrutura nacional deste organismo, a cuja propaganda não foram alheias as salas cheias. Por isso, irrita-me que, agora em Março, me tenha passado ao lado a presença da Orquestra Gulbenkian, cuja divulgação não foi além das páginas do folheto mensal do Teatro.
Caro Senhor Presidente da Câmara Municipal de Bragança, reconheço que há questões às quais sou particularmente sensível e que fazem emergir a minha faceta de chata arraçada de melga. E também reconheço, Senhor Presidente, que neste momento – entre a seca, o presidente da distrital do PSD e a não-barragem de Veiguinhas – não lhe faltam razões para dores de cabeça. Pelo que certamente considerará que este assunto do Teatro é um mal menor.
Porém, qualquer batalha desvalorizada pode pôr em causa o rumo da própria guerra.