“As crianças deviam estar a ter a possibilidade de brincar e a aprender de forma livre”

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Qua, 03/05/2023 - 10:33


Carlos Neto, investigador e professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, é um dos maiores especialistas na área da brincadeira e do jogo, bem como da sua importância para as crianças. Considerando que devem ter liberdade para explorar a brincadeira, para se desenvolverem de forma saudável, assegura que os mais pequenos devem ter a possibilidade de errar. Num cenário em que há cada vez mais casos a chegar às Comissões de Protecção de Crianças e Jovens, ou que esses casos são mais complexos, defende que é preciso deixar as crianças perceber como resolver os problemas, de forma a não se tornarem adultos desequilibrados.

Defende que o mais importante que podemos aprender não é na escola e que é fundamental errarmos, fazer as coisas no tempo certo. De que forma é que isto está relacionado com o facto de as tipologias de casos que chegam às Comissões de Proteção de Crianças e Jovens serem cada vez mais graves?

Estamos a criar crianças que serão adultos, de alguma forma, desequilibrados? A questão é que há uma formatação das crianças que não está de acordo com o seu nível de desenvolvimento. As crianças deviam estar a ter a possibilidade de brincar e a aprender de forma livre, adquirir conhecimentos, como, há trinta ou quarenta anos, fazíamos com os nossos amigos, numa dimensão informal, brincando muito na rua. Portanto, é preciso termos políticas públicas ousadas para tornar as cidades, famílias e escolas activas e não estar tudo preocupado com uma escola a tempo inteiro. É preciso que haja equilíbrio no desenvolvimento humano. É preciso que as crianças tenham tédio e frustração, que não seja tudo pronto e dado na hora, para que elas tenham resiliência e capacidade de adaptação. Pretendemos crianças que sejam capazes de resolver problemas, de se adaptar a situações imprevistas e incertas, capazes de trabalhar em grupo, de saber comunicar, que tenham aquilo a que chamamos soft skills, para uma sociedade que está em Carina Alves CARLOS NETO, INVESTIGADOR NA ÁREA DA BRINCADEIRA E DO JOGO “As crianças deviam estar a ter a possibilidade de brincar e a aprender de forma livre” Carlos Neto, investigador e professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, é um dos maiores especialistas na área da brincadeira e do jogo, bem como da sua importância para as crianças. Considerando que devem ter liberdade para explorar a brincadeira, para se desenvolverem de forma saudável, assegura que os mais pequenos devem ter a possibilidade de errar. Num cenário em que há cada vez mais casos a chegar às Comissões de Protecção de Crianças e Jovens, ou que esses casos são mais complexos, defende que é preciso deixar as crianças perceber como resolver os problemas, de forma a não se tornarem adultos desequilibrados. grande transformação. Estamos a viver uma transição digital, uma transição verde, climática, energética, educacional, que necessita de uma nova escola, uma nova família e uma nova sociedade, para valores diferentes, porque estamos a viver, de facto, um mundo digital, que está a ser imparável. Não podemos ficar encharcados de entretenimento dado pelos ecrãs. Precisamos de mexer o corpo para ter uma saúde activa. É preciso que haja elementos essenciais naquilo que é a conquista de crianças, jovens, adultos e idosos por uma vida saudável: boa alimentação, dormir bem, actividade física regular e intencional e um bom equilíbrio entre mexer o corpo e ir buscar informação aos dispositivos digitais, que vieram para ficar. Esta nova inteligência artificial, que está a modificar o mundo, tem de ser percebida como algo que vai mudar muitas coisas no nosso quotidiano. É preciso haver uma nova forma de visualizar o futuro, criando uma escola nova, mais democrática, participativa e criativa, que remodele o seu modelo de ensino, para preparar estas crianças para o futuro, que é imprevisível, incerto e desconhecido. E, por outro lado, é preciso ter famílias mais amigas das crianças, com mais tempo disponível.

O número de casos que chegam às CPCJ’s tem vindo a aumentar, em alguns pontos do país, e as suas tipologias são mais graves. Muita da culpa é atribuída ao contexto em que vivemos, depois de termos atravessado uma pandemia e agora vivermos uma guerra. Defende que não devemos criar crianças “totós” para que não se tornem adultos pouco capazes. Mas considera que já há pais assim?

Eu não diria que são adultos desequilibrados, viveram foi outro tipo de experiências, que gerações anteriores, como a dos pais, não viveram. De facto, tem-se vindo a agravar este sedentarismo progressivo e, por outro lado, esta tendência para o imobilismo. Isso transmite-se para os filhos, que são esponjas das vidas dos pais. E, portanto, isto significa que se cria uma grande vulnerabilidade e imaturidade e que, hoje, as crianças não têm resiliência e capacidade de reagir a situações imprevistas, sendo muito propícias a vivenciar episódios de alguma violência, bullying, situações que são inconvenientes, sob o ponto de vista de abusos, de dinâmicas incorrectas. Hoje há menos casos em alguns locais mas mais noutros, mas os que existem são mais complexos. Portanto, temos de trabalhar todos em conjunto, em rede, para saber encontrar e diagnosticar essas crianças e jovens adolescentes que, hoje, estão numa situação de dificuldade de saúde mental, porque não têm expectativas, prazer na existência, dimensão de futuro e vivem com famílias destruturadas. É preciso estar muito atento as estas mudanças que estão a acontecer na sociedade porque depois isto tem repercussões na vida escolar, no desenvolvimento pessoal e colectivo. A pandemia agravou esta situação e agora vivemos um cenário de precariedade, inflação, situação de guerra e isto cria uma angústia e ansiedade enorme, a que é preciso estar-se atento. O corpo tem limites, não aguenta tudo. Há aqui conflitos geracionais e é preciso, obviamente, ir buscar as memórias de infância, provavelmente os avós começarem a falar mais com os netos, para lhes mostrarem as experiências que fizeram na sua infância, e os pais fazerem também uma espécie de reabilitação para tentarem perceber que a educação dos seus filhos merece ser feita de outra maneira, de forma mais prazerosa e agradável e não estar apenas centrada numa expectativa de perfeccionismo escolar, apenas preocupados com notas, diplomas e a possibilidade de entrar na universidade. É preciso que as crianças tenham gosto em viver a sua própria idade, de infância e adolescência, e é necessário fazerem algumas asneiras para caírem muitas vezes e para se porem de pé. Isso é essencial. Por isso, precisamos de uma nova ordem de valores, trabalhar juntos para construir uma sociedade nova e em Portugal, que é um país fascinante, em termos de clima, de cultura, de tudo, não podemos viver esta precariedade cultural, esta precariedade de sobrevivência, porque vivemos nessa condição, e é preciso dar tempo para que haja melhor qualidade de vida.

Perante o cenário que vivemos, estamos todos sem objectivos e desmotivados?

Anda tudo entretido e manipulado por uma vida vivida à pressa, na superficialidade e não em profundidade. É preciso ganhar valores e ter objectivos e eles são construídos numa existência que tem de ter sentido, tem de se ter rumo. Para isso é preciso parar, pensar e voltar a começar de novo para uma nova existência porque esta leva-nos a situações dramáticas, muitas vezes de desinteresse, doença mental e de inquietação emocional.

Nunca é tarde para criar esses valores?

Claro que nunca é tarde. O ser humano tem essa capacidade de se reinventar todos os dias, essa possibilidade interior de se auto- -avaliar e recomeçar uma vida nova. Da mesma forma que isto acontece com crianças e jovens também acontece com adultos. Eu acredito que o futuro vai ser melhor. É necessário agora dar mais atenção às pessoas, dar mais valor político à participação dos cidadãos na construção da sociedade, da família, da escola. Temos um país maravilhoso e é possível construir esse país para o futuro, dando mais importância à conexão com a Natureza e, por outro lado, acreditando que estes dispositivos digitais vêm melhorar a nossa vida.

Jornalista: 
Carina Alves