Cada cidade, região ou país, tem na cultura e na história, a razão própria de ser que a individualiza e lhe confere identidade. A cultura regionalista é afirmação de identidade, do legado secular de gerações enraizadas nesses territórios, que representam a terra do coração e do espírito. A Província, tem sido ao longo de séculos uma unidade de organização do território, por regra coincidindo com regiões naturais ou históricas. Portugal teve início numa província do reino de Leão. Em escala diferente, foi ao longo de séculos a unidade de referência das origens de cada português. No século XV Portugal continental estava dividido em seis comarcas de administração civil e militar, coincidentes com as regiões naturais ou históricas: Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes, Beiras, Estremadura, Alentejo e Algarve. No século XVI passaram a designar-se de províncias, mantendo o país com a mesma divisão. No século XVII a província foi dividida em comarcas, deixando de existir como entidade de administração civil. Em 1641 as províncias foram a base territorial para a reorganização de raiz do exército, desmantelado durante os 60 anos que durou a União Ibérica. A defesa da independência do país, exigiu prioridade às questões militares, para enfrentar uma guerra que durou 28 anos. Como província militar, foi também unidade de referência geográfica e estatística. Entre 1832-1835, voltou à condição de unidade de administração civil e militar, e na reforma administrativa de 1835 foram substituídas por dezoito distritos. Vigorou ainda no Estado Novo, entre 1936 e 1959. A província de Trás-os-Montes que durante séculos manteve a configuração territorial, alargou os seus limites a sul, incluindo municípios dos distritos de Viseu e da Guarda, passando a designar-se de Província de Trás-os-Montes e Alto Douro. Após a criação dos distritos, foram várias as tentativas de alteração da divisão administrativa. Almeida Garret apresentou em 1854 na Câmara dos Pares um projeto de divisão administrativa do país em províncias. Em 1867 foi aprovada uma nova divisão administrativa, reduzindo o número de unidades territoriais no continente de 18 para 12, iniciativa política que sob protestos levou á queda do governo. Durante a crise política e financeira de 1890, os principais partidos da monarquia acordaram reduzir o número de distritos, acordo que não assumiu forma de lei. A divisão administrativa do território, foi campo de combate político dos republicanos contra a monarquia, a 11 de janeiro de 1891, o Diretório Republicano no seu primeiro manifesto, consagrou o federalismo do Estado na vertente administrativa e legislativa, concebendo o país dividido em províncias e municípios, propondo-se acabar com os distritos. No período final da monarquia, a propaganda republicana tinha no centralismo, e na formulação da divisão administrativa do país, um ponto forte de combate político. A Constituição da República, de 21 de agosto de 1911, inscreveu no título “Das instituições locais administrativas” a referência “aos poderes distritais e municipais”, omitindo a província. Consagrou a República una e indivisível, tendo como fundamento o facto de Portugal ser uma nação estável, sem tradição de divisões religiosas, étnicas ou culturais. Esta opção de organização do Estado, contrária ao manifesto federalista elaborado pelo Diretório Republicano, abriu um debate intenso que dividiu os republicanos durante a I República, aumentando a instabilidade política que a caracteriza. Em 16 anos foram 45 governos e duas Juntas de governo, e oito chefes de Estado. No ano de 1911, o bragançano Alves da Veiga, figura da Revolta de 31 de janeiro de 1891, não aceitava a opção constitucional, argumentando que todas as populações tinham especificidades que lhe advinham da sua situação geográfica, climatérica e sociológica, defendendo a República Portuguesa como uma «Confederação das oito províncias, designadas como Estados Provinciais.» Em 1914 no Senado foi aprovado um Código Administrativo da República, dividindo o país em 6 Províncias. A Câmara dos Deputados rejeitou o projeto do Senado considerando que os distritos tinham já uma longa tradição, e que a sua extinção poderia levar à queda do Governo. Nesta altura ganhavam folgo as ideias que defendiam a realização de congressos regionais, interpretando aspirações regionalistas, defendendo o reforço da autonomia municipal, e a província como unidade administrativa. Pretendiam unir vontades e conhecimento, debater o desenvolvimento das regiões e o seu futuro, apresentar propostas contra o atraso e as más condições de vida no Interior. A Primeira Grande Guerra, arrefeceu o ímpeto regionalista, retomado logo após terminada a guerra. O I Congresso Algarvio foi realizado no ano de 1915, não se realizou o segundo, devido a divergências com a organização feita a partir de Lisboa. O I Congresso Transmontano, teve uma primeira tentativa de realização no ano de 1916, veio a realizar-se em 1920, num contexto de grande ins- tabilidade política, greves e atentados. Foi o único congresso regionalista que teve continuidade até ao presente. O I Congresso Regionalista das Beiras, realizou-se em 1921, sob o lema “na beira manda o beirão quer Lisboa queira quer não”, o III Congresso Nacional Municipalista realizou-se em 1922, sob o lema “A Nação quer viver”. Trindade Coelho (filho), foi um dos ativistas do regionalismo, apresentou em fevereiro de 1922, um projeto de constituição para uma República Federal, foi publicado nos jornais O Primeiro de Janeiro e O Século. A constituição de 1933 acolheu o debate regionalista, criou 12 províncias conferindo-lhe o estatuto de autarquia, retirando-o ao distrito, coexistindo as duas entidades de divisão territorial, o que não gerou consensos, e na revisão constitucional de 1959, foi novamente atribuído o estatuto de autarquia ao distrito, continuando as províncias a existir como expressão de regiões naturais e históricas. Após a Revolução de 25 de Abril de 1974, na Constituição de 1976 o distrito perdeu a qualidade de autarquia, permanecendo como unidade territorial enquanto não forem instituídas as regiões administrativas, nos termos do art.º 236.º que refere, “No continente as autarquias locais são as freguesias, os municípios e as regiões administrativas.” A Constituição da República, estabelece que no continente, a descentralização deve fazer-se para os municípios e para as regiões administrativas. Não podemos, na organização política e administrativa confundi-las com as regiões autónomas dos Açores e da Madeira, dotadas de Governo Regional e Assembleia Legislativa Regional. Compreender a diferença é essencial para um debate informado sobre a regionalização. O III Congresso de Trás-os-Montes Alto Douro, realizado em Bragança, em setembro de 2002, sob o lema “rumo à modernidade”, com 1200 congressistas, teve como objetivo central desencravar a região com novas acessibilidades, apesar dessa prioridade, o tema da regionalização esteve presente, e nas conclusões reivindicou-se a criação da NUT II Trás-os-Montes e Alto Douro, dividindo a NUT II Norte em duas, conforme as províncias históricas, decisão que deve favorecer o debate sobre a criação da região administrativa de Trás-os-Montes e Alto Douro. Em parte, esta ideia assenta no princípio de que as regiões mais pobres, as do interior, não podem continuar a ser prejudicadas pelas regiões mais ricas, as do litoral, que aproveitam da pobreza daquelas, para receberem apoios da União Europeia, atribuídos para promover a coesão e o desenvolvimento das regiões menos desenvolvidas. A prática é outra, quebrando princípios de justiça, de equidade e de solidariedade recíproca, agravando o despovoamento do Interior e em parte as assimetrias. Pretende-se recuperar voz e poder de decisão para Trás-os-Montes e Alto Douro, nomeadamente na conceção da estratégia territorial, sobre o caminho a percorrer e planos de ação a concretizar, sobre a utilização e valorização dos recursos patrimoniais e naturais. Decidir sobre projetos prioritários e seu financiamento, assegurar coesão e competitividade territorial, conquistar capacidade de decisão local contra o centralismo de Lisboa e em parte do Porto, que tudo decide, mesmo nos assuntos mais elementares. A discussão sobre a regionalização evoluiu no início da década de 1990, com a aprovação da Lei-quadro das Regiões Administrativas, sendo primeiro-ministro Cavaco Silva. Com a revisão da Constituição em 1997, houve um recuo, foi introduzida a obrigatoriedade de um referendo à regionalização, realizado uma década depois, em 1998, tendo por base um mapa de oito regiões, as tradicionais províncias históricas. Não foi vinculativo, devido à baixa afluência às urnas. Em 2021, no Congresso da Associação Nacional de Municípios, o primeiro-ministro António Costa prometeu que o governo faria um novo referendo à regionalização em 2024, tinha o apoio de Rui Rio Presidente do PSD, e a concordância do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. Logo que Luís Montenegro constituiu governo, o processo foi bloqueado, regressou o silêncio de muitos que tanto reclamavam a regionalização. Acontece assim noutras matérias, resultado da militância partidária feita de obediência incondicional, bem observável na Assembleia da República, quando a prioridade deixa de ser a apresentação de propostas em benefício da comunidade dos círculos eleitorais do interior. Podia ser diferente, falta voz efetiva as regiões no parlamento. O regime de eleição dos deputados deveria ser diferente, os círculos eleitorais do interior deveriam ser representados por um número maior de deputados. Lisboa e Porto tendem a ocupar todos os lugares do interior. Vem a propósito lembrar a ação pedagógica de elucidação do povo para a democracia, por parte do republicano, magistrado e escritor, o mogadourense Trindade Coelho (pai), que na fase final da mo- narquia, acerca do abandono geral da Província Transmontana, tentando acordá-la, se referia à “ação absolutamente nula de muitos dos seus parlamentares.” Em defesa das regiões administrativas, devemos atender à evolução do Poder Local, um dos pilares do desenvolvimento e modernização do país, assente na estabilidade política, em políticas de médio e longo prazo, na proximidade aos problemas dos cidadãos, na maior facilidade de escrutínio sobre as decisões e prioridades adotadas. É uma marca poderosa do legado democrático, em geral, construída com responsabilidade institucional e financeira. O Poder Local é sinal de desenvolvimento, cidadania e a confiança na democracia. Com poucos recursos, garante um contributo decisivo na atratividade e modernidade do espaço público, das aldeias, vilas e cidades, nas políticas ambientais e de sustentabilidade, nos equipamentos culturais e de ensino, de lazer, de integração social, fazendo dia a dia melhor cidade. O Poder Local cumpre a função de go- vernação que a Constituição lhe confere. Em 2013 foram criadas as Co- munidades Intermunicipais, pela lei n.º 11/2003, tendo como exigências de constituição, a continuidade territorial e dispor de um mínimo de 150 000 habitantes. Em 2008 a lei foi revogada pela Lei n.º 45/2008, e o Dec. Lei n.º 50/2018 criou a Lei-quadro da transferência de competências, concretizada por Dec. Lei n.º 102/2018. As Comunidades Intermunicipais como entidades associativas, visam a integração de políticas intermunicipais, a elaboração de estratégias sub-regionais, executar programas de investimento, que no essencial se baseiam em programas da política de coesão da União Europeia. Em parte, sobrepõem-se às associações de municípios de fins específicos. Creio não ter sido uma boa decisão, o território continental ficou dividido em 23 Entidades Intermunicipais (21 CIM e 2 AM), uma fragmentação excessiva. Servem para pouco mais do que a territorialização da gestão de fundos comunitários. No meio de indefinições e hesitações, sobre a criação das regiões administrativas, foi em 2018 encomendado pela Assembleia da República, um estudo a uma Comissão Independente para a Descentralização, vem sendo implementada uma reorganização territorial à volta das cinco regiões de planeamento, as CCDR, com o propósito de mais tarde, impor esta solução como região administrativa. Creio que erradamente. Sem o envelope financeiro dos fundos da União Europeia, o atual papel das CCDR seria di- minuto. Não dispõem de legitimidade política, não respondem de facto pelos resultados da gestão, perante a região, não dispõem de planos estratégicos de desenvolvimento, que não podem confundir-se com planos regionais de aplicação de fundos comunitários. Portugal nas últimas décadas melhorou muito. Não existe hoje, uma assimetria entre o interior e o litoral tão grande como havia na década de 1970. Basta pensar nas acessibilidades rodoviárias, nas infraestruturas de saúde e ensino. Tal não significa que não existam áreas em que as assimetrias regionais se agravaram. A política pública tem beneficiado muito mais, e mais cedo, o litoral do que o interior. No interior a política centralista encerrou diversos serviços públicos, esvaziou de competências outros, e na fúria centralizadora até a ferrovia em Trás-os-Montes foi arrancada. Resta um território com elevado potencial de desenvolvimento, mas despovoado e com a população demasiado envelhecida. Trás-os-Montes e Alto Douro (TMAD) está sob um intenso abalo demográfico, o seu principal desafio. Representava 7,82%, da população do país, no ano de 1960, representa 3,49% em 2021. Em pouco mais de meio século perdeu cerca de 50% da população, reduzindo de 692 029 habitantes para 361 281, população que não irá recuperar nas próximas décadas, tal como a generalidade das NUT III fronteiriças. Há trabalho a fazer em termos de política pública para contrariar a fratura existente no país, resultado da concentração no litoral, do investimento que atrai a população, e do desinvestimento no interior condenando-o ao abandono territorial, e ao flagelo do despovoamento e dos incêndios. O país não pode desistir das suas regiões fronteiriças, valorizadas em atos eleitorais, e logo de seguida esquecidas, deixando de se falar em interioridade e em assimetrias regionais, quando muito toma-se uma ou outra medida avulsa. Duas prioridades políticas para alterar esta má realidade, poderiam ser adotadas: a assunção do conceito de interioridade e a criação das regiões administrativas. O conceito de interioridade, deveria exigir que a principal produção legislativa com impacto nas regiões do interior, fosse avaliada à luz do conceito jurídico de interioridade, que a Assembleia da República deveria aprovar, de modo a medir o impacto legislativo positivo sobre o país mais pobre e esquecido e eliminar impactos negativos, favorecendo a correção de assimetrias territoriais. Conceito com o qual a Faculdade de Direito de Lisboa está comprometida no âmbito das suas iniciativas em Bragança, nos Cursos de Direito e Interioridade e outras iniciativas promovidas sob a orientação do seu Diretor, Professor Eduardo Vera-Cruz, Vai fazer meio século que as regiões administrativas foram consagradas na Constituição. Os receios de avançar parecem ser os mesmos do tempo final da Monarquia e da 1.ª República, os de perder parte do poder. Aos municípios não se pode pedir muito mais, a não ser eficiência, sustentabilidade, rigor administrativo e financeiro, e reforço dos projetos supramunicipais. Falta assumir a autarquia intermédia, a região administrativa, entre o governo central e os municípios, descentralizar competências políticas e administrativas, recursos financeiros, incentivando o desen- volvimento do país como um todo, fortalecendo a coesão social e territorial. Para isso deveria avançar a criação das oito regiões apresentado no referendo de 1998. As regiões administrativas, podem assegurar uma presença mais próxima dos cidadãos, maior eficácia do Estado nas políticas regionais, libertando a administração central de tarefas em que o princípio da subsidiariedade se aplique, para melhor servir o país. A região administrativa pode mobilizar o potencial de recursos económicos e de conhecimento de cada região, garantir equidade e justiça interregional, proporcionar maior crescimento ao país. Permitir às regiões históricas conceber e executar políticas próprias, escrutinadas na região, em contraponto a muitas das orientações impostas, com algum desconhecimento e frequente esquecimento das prioridades de desenvolvimento, é entregar aos residentes, parte importante das decisões sobre o seu destino coletivo, rompendo com uma cultura centralista secular, que tudo decide em Lisboa e até no Porto, por regra em seu favor. Conceber e executar políticas de desenvolvimento em articulação entre o governo, as regiões administrativas e os municípios, é o que verdadeiramente pode mobilizar o potencial específico de recursos económicos e de conhecimento de todas as regiões, assegurar coesão e competitividade ao país, fazer a economia crescer, aumentar o rendimento das famílias, assegurar eficácia e sustentabilidade às políticas públicas, a convergência adiada com a União Europeia. 9 de abril de 2025