Número de participações do crime de violência doméstica aumentou no distrito

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Ter, 20/02/2024 - 09:57


Segundo os dados da GNR, no distrito de Bragança em 2023, comparando com 2022, houve mais 50 denúncias. No Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência Doméstica de Bragança o número também disparou. Em 2022 foram atendidas entre 160 a 170 vítimas e em 2023 foram atendidas entre 240 a 250 pessoas

O número de casos de violência doméstica aumentou, a nível nacional, comparando o ano de 2022 com o de 2023. A região não fugiu à tendência. Também no distrito, ao longo de todo o ano passado, as forças policiais receberam mais participações do crime.

Durante o ano de 2022, na área de responsabilidade da Guarda Nacional Republicana (GNR), foram registados 14 636 crimes de violência doméstica, tendo sido detidas 1 509 pessoas. Em 2023, foram registados 14 824 crimes e efectuadas 1 587 detenções. Estes dados são provisórios, mas mostram, desde já, que, a nível nacional, houve mais queixas, 188, e mais detenções, 78.

Já na área de responsabilidade da Polícia de Segurança Pública (PSP) houve 15 499 denúncias de violência doméstica, em 2023. Já no que toca a detenções o número é 971. Comparando com 2022, houve um decréscimo do registo de denúncias pelo crime de violência doméstica, foram menos 284, no entanto foram efectuadas mais 17 detenções.

No distrito de Bragança, segundo dados da GNR, em 2022 foram registadas 199 participações do crime de violência doméstica. Em 2023 houve 249. Ou seja, mais 50 queixas. No que toca a detidos pelo crime, em 2022, foram 26. Em 2023 foram menos dois, ou seja, 24. Já quanto às denúncias que chegaram à PSP, até ao fecho desta edição, não conseguimos saber o número, pelo que os únicos dados que conseguimos apresentar são relativos à tendência nacional.

As autoridades alertam que "a violência doméstica é crime público e denunciar é uma responsabilidade colectiva", apelando à comunicação deste tipo de crime.

 

Vítimas que se calam por medo e vergonha

“Maria” não entra nestas estatísticas, não ajudou a aumentar o número de casos deste crime, mas conheceu a realidade violência doméstica. Não fez queixa por “medo e vergonha”. “Quando ele previu que eu poderia denunciar o que se passava disse-me que se eu avançasse ele também o faria, uma vez que eu também o agredi, algumas vezes para me defender e outras por raiva do que me estava a fazer. Mas, de facto, acreditei que eu também era agressora e então seria igualmente ‘castigada’”, explicou, dizendo que agora não vê as coisas “da mesma forma”, mas naquela altura teve “medo”, acreditando que “não era melhor que ele”.

Segundo contou, o primeiro acto de violência física por parte do, à época, companheiro, aconteceu “poucos meses” depois de se conhecerem. “Houve um dia que discutimos bastante e aconteceu um acto que eu não previa. Bateu-me. Apesar de ter ficado perturbada a relação continuou. Eu desculpei, como fiz de todas as vezes seguintes”, explicou, dizendo que acreditou que tinha sido um “acto isolado”, de “estupidez”, que “não voltaria a acontecer”, até porque, conforme referiu, o companheiro “tinha bebido”.

Antes desse episódio, poucos dias depois de começarem a relacionar-se, começou a violência psicológica e verbal. “Tratava-me mal e chamava nomes. No começo fazia-o quando bebia. Depois já não interessava o estado. Simplesmente se passou essa marca e depois era completamente normal acontecer, mas eu sempre acreditei que as coisas mudariam”, rematou.

Dizendo que hoje em dia compreende que tinham “formas de vida diferentes”, considera que isso mesmo estava na origem dos “desentendimentos” que acabavam em episódios de violência, fosse ela de que tipo fosse. “Eu queria determinadas coisas que ele também dizia querer mas, depois, não era isso que acontecia e eu reclamava. Essas ‘queixas’ faziam com que, muitas vezes, surgisse descontrolo e, depois, consequentemente, batia-me. Depois da primeira vez que isso aconteceu, ainda que eu tivesse acreditado que não iria acontecer mais, voltou a suceder”, esclareceu, assumindo que se manteve por vários meses naquela situação por “esperança” que tudo se alterasse. Mas isso não aconteceu.

O “receio” em se expor também a demoveu de denunciar a situação. “Não queria que as pessoas olhassem para mim e automaticamente começassem a pensar nisso. A imaginar como o pude permitir”, explicou, assumindo que, neste momento, sabe que “são situações que, independentemente do que os outros comentem, do medo, da vergonha, não se podem silenciar”, sob pena de “acabar em algo pior”.

 

Vítimas estarão mais despertas para procurar ajuda

Ao Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência Doméstica de Bragança, uma resposta da Associação de Socorros Mútuos dos Artistas de Bragança (ASMAB), chegam pessoas que são encaminhadas pelas autoridades, após a denúncia, e vítimas que procuram ajuda, compreender a situação e perceber o que podem fazer, mas que ainda não apresentaram queixa. E, segundo Maria Luís Martins, psicóloga e coordenadora do núcleo, ao espaço, que está de portas “escancaradas” para receber quem precisa, chegou bem mais gente em 2023. “Em 2022 foram atendidas entre 160 a 170 vítimas e em 2023 foram atendidas entre 240 a 250 pessoas”, explicou.

Por este acréscimo pode ser responsável o cenário mais óbvio: aumento do número de casos de violência doméstica mas, felizmente, não só. “Pode dever-se a duas coisas, a um maior número de situações de violência doméstica, mas também a uma maior abertura para procurar ajuda, saber onde se dirigir e tentar perceber que possibilidades há de sair da situação. Não quer directamente dizer que as situações aumentaram, mas, garantidamente que, pelo menos, as pessoas procuram mais ajuda”, rematou, assumindo que o facto de o assunto ser cada vez mais falado, em vários meios e órgãos de comunicação social, plataformas online e entre a sociedade em geral, ajuda a que as pessoas compreendam que podem e devem perceber que ajudas há ao dispor. Sobre esta matéria, Maria Luís Martins tem até mesmo a opinião de que é “importante” não só noticiar as tragédias associadas ao crime, nomeadamente homicídios, mas também falar-se de casos “bem sucedidos”, em que as pessoas conseguiram “sair das suas relações abusivas” e “seguir as suas vidas”. Desta forma mais gente ganharia “coragem” para dizer basta e saberia até onde pode deslocar-se para ter a ajuda necessária a colocar o ponto final pois nem sempre as vítimas têm a bravura suficiente para denunciar a situação, já que as queixas “têm um peso muito grande”.

 

Ombro amigo

Ao núcleo brigantino as pessoas podem chegar através dos órgãos policiais, mas também por vontade própria, começando, a partir daí, o acompanhamento. “Primeiro tentamos contextualizar a situação e do que se trata, compreender que tipo de apoio aquela pessoa diz precisar e avaliamos o que precisa. Feito esse trabalho são realizados encaminhamentos, nomeadamente para apoio psicológico, jurídico e até mesmo social”, esclareceu a coordenadora do núcleo, vincando que aquilo que considera mais importante é o facto de estarem “sempre presentes” para acompanhar a vítima naquilo que seja necessário. “Podemos acompanhá-la nas diligências juntos dos órgãos policiais, junto dos advogados e do tribunal, durante todo o processo, prestando apoio. Sempre que as coisas fiquem mais assustadoras, as pessoas têm um telefone, para onde pode ligar 24h por dia, para esclarecer dúvidas, para apoio emocional, para qualquer coisa”, sublinhou Maria Luís Martins.

E refira-se que a ajuda é para todos, até porque ao Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência Doméstica de Bragança chegam mulheres, mas também homens, apesar de serem bem menos, pessoas de todas as idades, de qualquer estrato social. A violência doméstica não escolhe as vítimas. Não interessa a cor, a conta bancária, a profissão. “Ninguém está livre de ser agredido na relação. Este apoio não existe apenas para pessoas carenciadas. Existe para toda a gente. Eu não posso escolher se uma pessoa me dá um estalo ou se me insulta, mas tenho poder de escolha, daí para a frente, em relação ao que quero. Nós servimos para aclarar essas ideias e o que a pessoa pode fazer para alcançar o que quer”, vincou Maria Luís Martins, que esclareceu que ao núcleo chega muita gente que “não quer apresentar queixa por medo, com vergonha do que os outros possam dizer e porque a assumem que a culpa de a relação ter funcionado mal é sua”, mas, com o apoio que lhes é prestado, “a maior parte acaba por perceber que parte da solução passa pela queixa”. “Não tenho números, mas diria que com 90% das pessoas que nos procuram é isso que acontece”, avançou a coordenadora, que sublinha que esta é a única forma de se garantir “segurança”, uma vez que são tomadas “medidas de protecção”.

 

Deixar andar não é solução

Segundo referiu a psicóloga, a maior parte das vítimas são mulheres, casadas e com filhos. Sendo casada ou não, tendo filhos ou não, as pessoas, hoje em dia, acabam por deixar arrastar a situação que vivem por causa da conjuntura, que “não é fácil”. “Estamos a passar por uma crise económica grande e não é fácil manter uma vida estável. Isso tem um peso muito grande nas decisões que tomamos. Se saímos de casa não pensamos só em nós, pensamos nos filhos, se temos ou não capacidade para lhes dar de comer. E se não há filhos também se pensa na capacidade que se tem de sobreviver sem a outra pessoa. Digamos que uma crise económica é também uma crise para as questões da violência doméstica porque há uma sensação grande de insegurança”, esclareceu, dizendo que, muitas vezes, “as vítimas acreditam que mais vale um mal conhecido que um bem desconhecido”.

Outra das razões para o dito “deixar andar” é a esperança da mudança. E a mudança pode acontecer, está claro, mas a espera pode deixar as vítimas em risco. Assim, havendo uma “tendência humana natural para desvalorizar erros”, numa relação violenta, em que existe “controlo e poder sobre uma pessoa”, a vítima chega a acreditar que é “culpada” pois, grande parte das vezes, o agressor ilude-a de que tomou determinado comportamento porque esta potenciou esse comportamento. E essa “desculpa” não é “desculpa”, mas é quando se começa a pensar que se é culpada pelo falhar da relação que se criam ideias de que o que se vive ainda pode mudar.

Quando se cai na “espiral” de pensamento de que a culpa não é só de quem agride é complicado abandonar o cenário. Neste percurso sinuoso, em que a vítima quer melhorar a relação, é propício que quem é agredido se “afaste” da família, dos amigos, da vida normal que tinha. Se assim for, o desfecho não é difícil de adivinhar: as pessoas acabam por ficar frágeis e isoladas. “Quanto mais isoladas mais difícil será, depois, sair da relação porque o que se imagina é que se se perder aquela relação não resta mais nada. Mas não. Não é assim. Muitas vezes perdeu-se sim tudo porque se esteve naquela relação, mas há uma solução, há uma saída”, terminou Maria Luís Martins.

Jornalista: 
Carina Alves