Ter, 10/10/2023 - 10:01
Como é que surgiu a ideia para este filme e quanto tempo demorou a passar de uma ideia a um projecto concreto?
A ideia surgiu quando perdi a minha avó materna. Foi ela que me inspirou para este filme. Foi uma pessoa que amei muito e que, ao escolher fazer este filme, quis lidar com ela e com as memórias que tinha dela, por isso foi filmado na aldeia da minha mãe, em Junqueira, na casa da minha avó. O processo de escrita foi bastante demorado, foram quase seis anos, a partir da realidade das memórias da minha avó, do cinema, da ficção, das histórias que tinha ouvido, que transformaram o filme, e o próprio encontro com a Ester Catalão, a protagonista, a actriz que interpreta o papel de avó.
Quando é que o filme foi rodado e quanto tempo demorou todo esse processo?
Foi filmado em 2021. Foram dois meses de rodagem, em Junqueira e nos arredores de Vimioso, e, depois, estivemos quase seis meses a preparar tudo isto. Em termos de casting’s, andando pelas aldeias todas da região, foram quase dois ou três meses, à procura de pessoas. Neste filme, a particularidade é que a maioria dos actores são não profissionais, talentos que descobrimos em Trás-os-Montes.
Exacto... Há muita gente que integra o filme que é de algumas aldeias do distrito de Bragança…
Foi um casting bastante alargado. Vi e conheci centenas de pessoas que aceitaram, por curiosidade, fazer o casting. Foi assim que fui descobrindo talentos e isso é mesmo uma magia, a magia do cinema, que permitiu que pessoas que tenham outro tipo de vida, homens e mulheres, de todas as idades, tenham entrado no filme. Para mim são actores profissionais porque trabalharam com muita criatividade e inspiraram-me. Estão hoje também de parabéns porque este Globo de Ouro também foi conseguido graças a eles. Regressei a Vimioso, depois da gala, e tivemos uma noite cheia de alegria e emoção. Ofereci o Globo de Ouro à Casa do Povo da minha aldeia, porque eles merecem. Este prémio não é só meu.
Porque é que decidiu que parte do elenco do “Alma Viva” seria composto por gente da região?
Porque, muitas vezes, tive uma sensação um bocadinho desagradável de sentir uma caricatura das pessoas do Norte, do campo. Muitas vezes, nas telenovelas, na televisão, estas pessoas são muito caricaturadas, há um estereótipo muito grande. Por isso, eu queria algo mais realista, mais sincero, mais autêntico, mais perto da língua, porque há uma forma de falar, de mexer, corpos que têm história, como as mulheres da minha aldeia, que só filmando as mãos há a história de uma vida de trabalho no campo. Foi assim que escolhi trabalhar com estas pessoas e são as pessoas mais bonitas que todos os actores que podia conhecer em Lisboa. Nunca tive dúvidas do talento que estas pessoas poderiam ter.
Qual foi a recepção das pessoas da Junqueira?
A maioria das pessoas foi colaboradora. Confiaram em mim. Eu vou à aldeia desde que nasci, apanho azeitona com eles, estamos juntos nas festas de Verão. Há uma confiança que é natural entre nós. Confiaram em mim e eu neles. Correu tudo muito bem. Foi uma aventura humana muito forte e foi tudo durante a pandemia, em 2021, quando havia ainda um determinado protocolo, mas isso até nos deu algo diferente porque estávamos todos fechados em casa e aquela aventura colectiva fez-nos rir muito e foi muito desafiante.
E que simbologia tem agora este Globo de Ouro?
Para mim é um reconhecimento. É uma forma de dizer “os teus pais saíram de Portugal mas continuam a ser portugueses e tu és francesa, mas também és portuguesa e mereces fazer parte das personalidades portuguesas do ano”. Para mim é um orgulho enorme e quando recebi este prémio lembrei-me dos meus avós. Foi um sonho. É lindo.
Além deste prémio, o filme também já recebeu várias outras distinções. Quais é que destaca e que simbologia têm?
Sim. O filme já recebeu bastantes prémios. Quando faço cinema não estou a pensar que vou receber prémios. Estou a fazer filmes porque gosto. Adoro o ser humano, filmar as pessoas, contar as suas contradições, emoções que vivem. Mas quando há prémios claro que há uma alegria a mais. Como disse, quando recebi este globo, o que importa é que nunca me vou esquecer de onde venho e quero ser sempre filha da minha terra, com aquela humildade, no sentido positivo, e modéstia, que os meus pais me ensinaram.
O filme já estreou em vários países. Esperava que tivesse este alcance?
Isso foi para mim a maior alegria. Mais do que os prémios é ver o filme a dar a volta ao Mundo porque é incrível dar a conhecer as histórias de uma aldeia tão pequenina, isolada, que costumamos dizer que é o fim do Mundo. Essas histórias, com essa linguagem, com essa forma de ser muito típica, tornam- -se muito universais. Tive testemunhos do Mundo inteiro, mexicanos, japoneses, russos, a dizer “na minha aldeia também é assim, a minha avó também era assim”. Porque o filme trata de assuntos universais e até a bruxaria, que pensamos que é um tabu, é uma realidade que aparece em vários países e não só no campo como nas cidades. Senti uma recepção muito forte no Mundo inteiro e, por isso, fico contente por dar a conhecer a minha aldeia.
O filme trata de questões como a bruxaria, mas o que é que nos transmite e ensina mais, sendo que aqui está também muito patente a questão da emigração?
O filme tenta levantar esse tabu, de não termos medo de assumir certas crenças. O filme não está fechado, tem uma relação racional e irracional. É um filme que trata a relação que mantemos com os nossos defuntos. Há uma frase muito bonita, do filme, que diz que os vivos fecham os olhos aos mortos, mas os mortos abrem os olhos aos vivos. Eu mesma escrevi o filme com os meus antepassados dentro de mim. Também há aqui a questão dos emigrantes, de uma avó que morre e as brigas familiares, a questão das partilhas… que também é uma questão universal, que também acontece com famílias de burgueses franceses ou em todos os meios sociais. As brigas à volta de uma morte são o começo da humanidade, pode dizer-se. Trata muito também da reacção que temos com a Natureza e com a morte. É também um filme de mulheres, de mulheres poderosas, transmontanas, fortes, de todas as gerações. Tenho muito orgulho de as ter filmado assim.
É também, por isso, uma homenagem à mulher transmontana…
É uma forma de dizer que elas assumem a sua forma de ser e são lindas. Sempre vi a minha mãe transformar-se. A minha mãe era de uma forma quando voltava à aldeia ou quando falava com as irmãs, mas quando estava à frente dos franceses já se tornava outra pessoa. Eu acho que não podemos negar o que somos e somos bonitos a ser quem somos. Não podemos entrar sempre naquele quadro que nos impõe a sociedade. Temos que nos assumir, assumir de onde viemos. Somos do campo, falamos como falamos, mas não somos menos que os outros. A nossa riqueza é essa. Eu acho estas mulheres muito fortes. Sempre vi as minhas tias e as mulheres da minha aldeia como sendo mais fortes que os homens.
Quanto ao filme, quais são agora os planos? Onde vai estrear agora? Há novas nomeações?
Agora estamos à espera do resultado de uns prémios em Espanha. Vamos ver se o “Alma Viva” consegue ser o melhor filme ibérico-americano. Depois temos outros prémios em França. Eu já estou a pensar no próximo filme, que também vai ser entre França e Portugal. Será sobre uma mulher muito forte, que me inspira, que existiu na vida real, mas não posso dizer mais, para ficar o mistério. Quero continuar com o cinema e tenho mais histórias para contar. Gosto de contar histórias e de trabalhar com as pessoas, de aventuras colectivas. Isso anima-me muito.