Maus-tratos sinalizados pela CPCJ são cada vez mais graves

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Qua, 03/05/2023 - 10:36


Principais sinalizações são relativas a negligência parental e exposição a violência doméstica

O número de crianças e jovens em risco aumentou, em 2021, segundo indicou o relatório da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens, divulgado em Junho de 2022. Ao longo daquele ano, as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) comunicaram 43 075 casos de crianças em situações de perigo, o que corresponde a mais 3 416 do que em 2020, traduzindo-se num aumento de 8,6%. Em Abril, que acaba de terminar, assinalou-se o Mês Internacional da Prevenção dos Maus-Tratos na Infância e, por isso, tentámos perceber que realidade agora vivemos. Apesar de ainda não haver números, porque o relatório da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens referente a 2022 ainda não foi divulgado, sabemos que processos que chegam às CPCJ, pelo menos de alguns concelhos do distrito de Bragança, são mais complexos.

Casos em Bragança aumentaram consideravelmente

Os maus-tratos nas crianças e jovens de Bragança têm vindo a “aumentar consideravelmente” nos últimos três anos. Há 172 processos com instrução, 75 provenientes de 2021 e 87 são novos processos. Segundo o presidente da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Bragança, Fernando Teixeira, as sinalizações dizem respeito, maioritariamente, a jovens entre os “11 e 14 anos” e entre os “15 e os 17 anos” e estão relacionadas, principalmente, com exposição a violência doméstica, mas também de negligência. “Temos tido algumas sinalizações de exposição de violência doméstica, sendo que o grande boom foi em 2022. O absentismo escolar aparece aqui, mas associado a escolas profissionais. No âmbito de negligência há aqui alguns processos de falta de supervisão e acompanhamento familiar. Pais separados, em que existe o conflito do divórcio e pelo meio temos a criança como arma de arremesso muitas vezes para defesa de um ou outro progenitor”, explicou. Fernando Teixeira explicou ainda que nos casos de exposição à violência doméstica, a CPCJ só intervém quando ainda não foi feita queixa nas autoridades. Nesse caso, acompanha a família e se a violência permanecer convence a vítima a apresentar queixa. Se a queixa já tiver sido feita, a vítima e o progenitor saem de casa e vão para um abrigo, e nesses casos a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens não interfere. O presidente da CPCJ de Bragança explicou ainda que alguns casos de violência estão associados ao consumo de álcool e estupefacientes. As famílias sinalizadas estabelecem um acordo com a CPCJ, que pode ser de meio ano, um ano e um ano e meio, passando a ser acompanhadas durante esse período, até normalizar a situação. E em alguns casos são também encaminhadas para o Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental. “Há uma ideia de que as famílias mais carenciadas, que têm menos recursos económicos e menos habilitações são aquelas que, à partida, serão as famílias que estão a ser trabalhadas pela comissão, por engano. Há toda uma estratificação social que engloba classe, baixa, média e alta, portanto não é por aí que os maus-tratos na infância existe”, realçou.

Casos descem em Alfândega da Fé mas inspiram mais cuidados

Em Alfândega da Fé, segundo esclareceu ao Jornal Nordeste, a presidente da CPCJ local, à margem do Seminário "A Pirâmide da Promoção e Proteção das Crianças e Jovens - Um olhar transversal", que se realizou no dia 27 de Abril, os casos são, agora, menos que aquilo que se tinha vindo a registrar. “Normalmente, neste concelho, tendo em conta que é pequeno, por ano, temos, mais ou menos, 20 processos activos. Neste momento temos menos, estamos com 14”, esclareceu Simone Amaral, que disse que para a entidade “é bom”, porque significa que se estão a “proteger” as crianças e que “todas as entidades de primeira linha têm feito o seu trabalho”. Graças a esse trabalho que a presidente diz que tem sido feito, “não têm chegado tantos processos como chegavam”, que, muitas vezes, estavam relacionados com o absentismo escolar. “São questões que, neste momento, as entidades de primeira linha e as famílias têm vindo a trabalhar e, por isso, estão resolvidos”, assinalou ainda sobre esta matéria. O ideal era que os casos tivessem descido, mas não houvesse mexidas no que toca à gravidade das situações. Ainda assim, não foi isso que aconteceu em Alfândega da Fé. “Não há mais casos mas as sinalizações, ou seja, os motivos pelos quais as crianças e jovens chegam à CPCJ, são mais graves”, esclareceu Simone Amaral, que explicou ainda que, normalmente, “os processos diziam respeito a absentismo escolar e negligência ao nível das necessidades básicas”, que “são graves de qualquer forma mas que, com algum tipo de acompanhamento, eram questões facilmente resolvidas”. “Agora, o que a pandemia nos trouxe, foi processos que nunca tínhamos tido em mãos ou se tínhamos tido eram muito poucos, nomeadamente maus-tratos à infância e negligência mais grave”, sublinhou a presidente da CPCJ de Alfândega da Fé. Perante a mudança de cenário, Simone Amaral diz que “não é fácil” uma comissão de protecção preparar-se para estas novas realidades mais complexas. Explicou que, por isso, o que se faz é “agir” consoante o que a lei permite, uma vez que não é da “competência” da CPCJ “investigar” ou “perceber se aquela pessoa é suspeita ou culpada de algo”, mas sim “prevenir e acompanhar”. “A nossa maior função é retirar a criança de qualquer tipo de ambiente onde haja perigo. Ou retirar ou eliminar o perigo”, afirmou Simone Amaral, que esclareceu que, neste momento, há apenas duas crianças institucionalizadas, olhando para o cenário de 14 processos que ali existem. Para a presidente da CPCJ de Alfândega da Fé um dos motivos que levou ao agravamento das tipologias de processos prende-se com o contexto e ambiente em que estamos a viver. “A nossa sociedade tem vindo a melhorar nuns aspectos, mas a piorar noutros. As nossas crianças e jovens são os adultos de amanhã e o facto de elas serem livres, não brincarem, não lhes ser dada autonomia, responsabilização e possibilidade de errar, bem como a pressão que lhes é exercida, leva a que, muitas vezes, no futuro, se tornem possíveis agressores, pessoas violentas e com problemas a nível psicológico”, admitiu.

Situações cada vez mais difíceis de “reparar”

Fernanda Almeida é coordenadora da equipa técnica regional do Norte da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ) e, não podendo avançar com um número exacto, no que toca a casos, porque “ainda não há dados globais”, disse que “o certo é que aquilo que se percepciona, através do acompanhamento às CCPJ, é que as situações são mais complexas, para além de haver um aumento destas”. “O momento que vivemos, de pós-pandemia e uma guerra, tem trazido para as famílias grande complexidade na satisfação das necessidades básicas e na satisfação das necessidades das próprias crianças, o que leva, muitas vezes, a situações de negligência e de falta de supervisão. Acresce aqui um mau- -trato mais complicado e situações mais difíceis de tratar e de reparar”, esclareceu a coordenadora da equipa que faz o acompanhamento das CPCJ dos cinco distritos do Norte, Bragança, Vila Real, Porto, Viana do Castelo e Braga. Dizendo que “há ideia de que o mau-trato é apenas quando se bate ou se abusa emocionalmente”, Fernanda Almeida disse que “há várias tipologias de maus-tratos”, nomeadamente absentismo escolar, negligência, abuso sexual, entre outros. O que acontece é que “os problemas são muito mais complexos”. Portanto, os factores que estão associados aos maus-tratos são também eles mais “complicados” e há “dificuldade” em atender a coisas tão “essenciais” como ter tempo para brincar com as crianças. Num mundo em que os pais precisam de ganhar dinheiro para sobreviver, Fernanda Almeida lamentou ainda que “os filhos estejam a tempo inteiro na escola”, o que acaba por prejudicar o seu crescimento. “Mesmo a rede de apoio dos pais já não é a mesma que era. Na minha geração eram os meus avós a rede de apoio dos meus pais e a minha rede de apoio foram os meus pais. Mas essa rede está a diluir-se porque as pessoas têm de trabalhar, cada vez mais, até idades avançadas”, esclareceu, dizendo que a falta de tempo que as crianças têm para ser crianças “gera muito stress nas famílias e muita dificuldade em responder a necessidades e, certamente, em algumas situações, as crianças ficam mais desprotegidas”.

Jornalista: 
Carina Alves/Ângela Pais