Famílias a acolher idosos e pessoas deficientes estão praticamente a “pagar para trabalhar”

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Ter, 07/03/2023 - 14:07


O número de famílias de acolhimento de idosos e pessoas adultas com deficiência no distrito está a diminuir porque há 14 anos que não há actualizações naquilo que lhes pagam

As famílias de acolhimento de idosos e pessoas adultas com deficiência estão, praticamente, em vias de pagar para trabalhar porque o que lhes é pago pela Segurança Social não é actualizado desde 2009.

A denúncia é de algumas famílias, que são uma das respostas de apoio social para idosos no nosso país. Ouvimos, de perto, a história e angústia de três mas a verdade é que há muitas mais a queixar-se.

Perante um país onde, segundo os Censos 2021, o envelhecimento demográfico se continuou a acentuar de forma muito expressiva, com 182 idosos por cada 100 jovens, e num distrito ainda mais amargurado nestes termos, as famílias de acolhimento consideram que deviam receber mais, sendo esta também uma forma de incentivar a que outras se dedicassem ao acolhimento. Ainda assim, o cenário está a desenhar-se em sentido inverso. Segundo apurámos, nos últimos anos, pelo menos no nosso território, o número de pessoas a acolher idosos ou adultos com deficiência caiu.

O panorama é preocupante até porque, segundo avançou o Expresso, 665 pessoas estavam internadas, no final de Janeiro, nos hospitais portugueses sem estarem doentes. O motivo é apenas um: não terem condições de sair. Os chamados “doentes sociais” já tiveram alta mas aguardam um lugar num lar ou numa unidade de cuidados continuados para reabilitação. Idosos, isolados e dependentes é o perfil dos que ficaram nas unidades de saúde por não terem familiares ou estrutura social que os receba.

 

“Não ganhamos nem o ordenado mínimo”

Por cada idoso ou pessoa adulta com deficiência, neste momento, e desde 2009, as famílias recebem 225 euros destinados à prestação de serviços, valor que passa para o dobro, ou seja 450, se a pessoa for dependente. As famílias recebem ainda 222,27 euros para a manutenção de cada pessoa acolhida. Neste valor não estão incluídas as despesas com medicamentos, vestuários, calçado e higiene pessoal, as quais constituem encargos da pessoa em acolhimento ou da família.

Este é, conforme as famílias, um valor muito baixo e o desespero, que já não é de agora, começa a agravar-se. Luísa Pires, de 55 anos, que vive em Sortes, no concelho de Bragança, acolhe três pessoas, número máximo permitido, e é uma das vozes de protesto, porque, feitas as contas, no que toca ao valor pago para manutenção, são sete euros por dia e não chegam para dar de comer a uma pessoa. “Neste momento, não ganhamos nem o ordenado mínimo. O dinheiro que ganho gasto-o com eles e não me chega”, explicou, dizendo ainda que quando começou a actividade “valia a pena” mas “agora já não”.

Afirmando que o dinheiro da manutenção para os idosos “fica muito aquém” do justo, sendo que é destinado a “comida, cama lavada, aquecimento, tudo”, não compreende não haver actualização de valores, porque “tudo subiu e sobe”.

Assim, considera que era melhor ficar por aqui com a actividade. “Penso, muitas vezes, em desistir e até estou a fazer isto contra a vontade da minha família”, assumiu, lamentando que “em qualquer sítio ganharia, pelo menos, o ordenado mínimo, tinha férias e algum tempo livre durante o dia”, ao passo que, cuidando destas pessoas, não pode simplesmente abandoná-las para ir de férias ou deixá-las sozinhas e ter algumas horas de descanso.

É a falta de direitos que, segundo Luísa Pires muito cansa também quem anda nisto. Estas pessoas trabalham a recibos verdes e “fazia falta reconhecimento”. O ideal para esta prestadora de serviços era tornar-se trabalhadora da Segurança Social, adquirindo os direitos que qualquer pessoa tem ou deve ter com um contrato de trabalho. “Mais tarde, quando nos aposentarmos, não vamos sequer ficar com uma reforma digna. Será ainda mais baixa que a que recebem as pessoas que agora acolhemos”, rematou ainda.

O amor, carinho, afecto e ternura que se ganha a quem se acolhe tem feito Luísa Pires voltar atrás na hora em que pensa deixar o que sabe e gosta de fazer. “Estas pessoas vêm para aqui e os laços acabam por se criar e tornam-se família sem o ser”, esclareceu, lamentando que esta resposta seja aquela que o Estado “esconde”, que ninguém conhece e que talvez seja por isso que estão “esquecidas”. “Ninguém quer saber de nós. As reformas dos idosos são actualizadas todos os anos, mas o que nos pagam não é e não se compreende”, terminou.

 

“Qualquer dia somos nós que temos que pagar para os ter”

Margarida Pinto vive em Bragança. É família de acolhimento desde 2007, altura em que se viu sozinha com dois filhos para criar. Tinha outra profissão, mas decidiu dedicar-se à actividade porque na altura valia a pena e porque, segundo assumiu, sempre teve “jeito” para os idosos. “222 euros a dividir por todos os dias do mês dá pouco mais de sete. Isso não é nada. Como é que é possível comer?”, questionou. Além deste montante servir para pagar a alimentação também é com ele que se devem pagar, por exemplo, as despesas inerentes a banhos e aquecimento. Os produtos de higiene, supostamente, não estão incluídos, mas está a água. “Este valor não dá para nada. Antigamente até dava. Agora não”, esclareceu.

A brigantina diz-se “desanimada” e desistir, mais dia menos dia, é uma opção. “As reformas dos idosos, pouco ou muito, todos os anos, são aumentadas. A prestação que dão à Segurança Social também é actualizada. Só não é actualizado o que nos pagam”, afirmou, relembrando que no começo, sozinha com os dois filhos, se governou. “Criei os meus filhos e desenrasquei-me. Dava para os gastos e sobrava. Agora falta. Quase pagamos para trabalhar”, disse Margarida Pinto.

Margarida Pinto também considera que são a resposta social que poucos conhecem, querem ver ou dar valor. Fala de uma vida complicada, que não se prende só com a não actualização daquilo que se recebe. “Tive aqui um idoso quatro anos e não recebeu uma única visita do filho. Ainda assim, esse mesmo filho, no final, veio pedir-me o dinheiro que sobrara da reforma do pai e queria que eu lhe pagasse aquilo que gastei para lhe comprar o que era necessário, sendo que os 30% com que o idoso fica da reforma devem ser usados para, por exemplo, roupa, colchões, almofadas, fraldas, medicação. Por isso, qualquer dia somos nós que temos que pagar para os ter”, esclareceu.

Em casa desta mulher também vivem três pessoas. Olhando para o cenário de inflação, Margarida Pinto considera que era justo, neste momento, estarem a receber, “pelo menos, 800 euros”. “Tiram-nos a força de vontade de trabalhar”, vincou, dizendo ainda que o facto de trabalhar a recibos verdes era uma questão “urgente” a resolver. Esta é uma questão sensível que se fosse corrigida poderia ser determinante para mais gente se “dedicar” à actividade.

Férias, para quem trabalha assim, não é fácil ter. “Tenho colegas que pagam a outra pessoa para ficar com os idosos para irem de férias. Mas quem é que pode pagar para ir de férias? Não faz sentido”, rematou.

No que toca a dias de descanso, segundo apurámos, é possível pedi-los. Os idosos serão encaminhados, por exemplo, para lares ou unidades de cuidados continuados. Contudo, o que as famílias explicam é que num dia levam um e passado uma semana levam outro. Enfim, quando já todos estão fora de casa e as malas feitas para ir de férias já o primeiro que saiu está para voltar.

 

Actividade vai-se mantendo para que idosos não sejam abandonados

Sónia Xavier, de Macedo de Cavaleiros, também é uma das famílias de acolhimento que há no nosso território. Saiu de uma situação bicuda para se meter noutra. Era professora e, “num ano complicado de colocações, em 2011”, decidiu dar uma “volta à vida”. Esta pareceu a escolha certa. Conseguia estar perto da filha, que era pequena, ganhava dinheiro e, ainda por cima, diz que sempre gostou de cuidar de idosos e admite ter bastante jeito.

Ainda assim, se esta aparentou ser a alternativa mais benéfica, hoje em dia já não é. “Estou frustrada e o que me leva a não abandonar é não deixar para trás as minhas colegas e quero demonstrar à sociedade que a área está abandonada pela não actualização da remuneração. Acho vergonhoso que desde 2009, estejamos esquecidas, sendo que até aí eram actualizados, anualmente, os despachos, tal como a pensão do idoso”, disse Sónia Xavier, que também acolhe três idosos e que lamenta que, “nem agora, com o aumento exponencial do nível de vida”, haja aumentos.

O valor pago pela prestação de serviços considera ser irrisório, mas é mais escandaloso, na sua opinião, o que lhe dão para manutenção das pessoas que acolhe. “Como é que alimento um idoso, pago luz e aquecimento com sete euros? Como é que se mantem assim adequadamente uma pessoa? Sete euros não dão para um almoço quanto mais para um pequeno-almoço, refeição a meio da manhã, lanche, jantar, reforço antes de ir à cama”, afirmou.

Desistir também é, tal como grande parte das colegas, um caminho que já fez menos parte dos planos. “Acho que nos vamos mantendo porque há pessoas que estão connosco há muito tempo e deixá-las está fora de questão. E o que mais me revolta é ver que há colegas que estão nisto há vários anos e de deixarem de estar, agora, aos 50 ou 60 anos, quem lhe vai dar trabalho?”, questionou, dizendo que se vão mantendo com os idosos que têm mais que não seja para, pelo menos, ir comendo.

Perante esta “área muito carente”, sendo que “não há camas nem vagas sociais para tanta gente que necessita”, diz não entender o porque de o Governo não fomenta a criação de mais famílias de acolhimento. “Está a fazer ainda pior do que isso porque nem sequer consegue manter as que tem”, vincou.

A situação “precária”, no que toca aos recibos verdes também pouco agrada. “Ficamos doentes e não temos direito a nada. E férias? Eu já as consegui ter. Pedi ajuda e os meus idosos foram inseridas em unidades de cuidados continuados. Mas naquele mês, além de não ter recebido nada, ainda tive que pagar à Segurança Social”, terminou.

Sónia Xavier tem-se queixado e até já escreveu uma carta à directora da Unidade de Desenvolvimento Social do Centro Distrital da Segurança Social de Bragança expressando o “grande descontentamento e até frustração com a falta de apoio e reconhecimento” pelo trabalho de todas estas famílias.

 

“Montante pago deixa de ser aliciante”

Tentámos contactar Isabel Bernardo, coordenadora das Famílias de Acolhimento de Idosos e Adultos do Deficiência do Centro Distrital de Bragança da Segurança Social, que se mostrou disponível para responder a algumas questões, por e-mail. Apesar de tudo, até ao fecho desta edição, não respondeu a qualquer uma das perguntas que lhe foram colocadas, nomeadamente quantas famílias de acolhimento há em todo o distrito, se há algum dos 12 concelhos onde não haja nenhuma família de acolhimento, quantas famílias existiam, por exemplo, há 10 anos, se se entende que o valor pago às famílias é justo, tendo em conta o aumento dos preços, como de vários bens alimentares, porque não há actualizações desde 2009 e quando há previsão de isso poder voltar a acontecer.

Ainda assim, Orlando Vaqueiro, director do Centro Distrital de Bragança da Segurança Social, falou desta matéria, em Janeiro, no âmbito de uma assinatura de protocolos para pôr em marcha a “Academia Familiar”, um projecto de literacia entre a Fundação Caixa CA - Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Alto Douro e a Unidade Local de Saúde do Nordeste, para dar formação a estas famílias, pelo menos às do concelho de Bragança, Vinhais, Macedo de Cavaleiros e Mirandela.

Ao Jornal Nordeste confirmou que as famílias “são importantes nesta região mas é pena que tenham vindo a cair”. “As pessoas que eram famílias de acolhimento, que vão adquirindo uma determinada idade, deixam de o ser, talvez o montante que é pago deixa de ser tão aliciante e para ser família de acolhimento também tem que se ter sensibilidade. Estes são os três factores que terão contribuído para esta diminuição”, disse Orlando Vaqueiro quando questionado sobre a diminuição que diz que houve. “Não tem havido motivação para que famílias mais novas surjam neste sector”, rematou ainda, dizendo, naquela altura, não saber quantas famílias de acolhimento havia no distrito.

Jornalista: 
Carina Alves