Em 21 de Janeiro de 1691, foi metido nos cárceres secretos da inquisição de Lerena, Castela, um homem de 33 anos, “prateiro do ouro e da prata”, natural de Chacim, que disse chamar-se Ambrósio de Saldanha Sória (1) e “tendo-se feito inspecção, pareceu estar circuncidado”. Por mais de 4 anos se manteve negando todas as acusações de judaísmo que lhe eram feitas. Até que, em 13.3.1695, pediu audiência para “desencarregar a sua consciência”. E então, entre outras, fez a seguinte confissão: - Há 20 anos, ausentando-se de Bragança para Múrcia, para ver a sua mãe, que lhe parece se chamava Ana Gomes, presa pela inquisição daquela cidade, disse o seu mestre que o deixava encomendado a Álvaro Vaz, prateiro da cidade de Bragança; e este lhe disse que Ana Pimentel, mãe do dito Álvaro Vaz, tinha intimidade (parentesco) com Leonor de Sória, avó deste; e que se haviam declarado na lei de Moisés, pelo que lhe disse a sua avó; e que fizeram um jejum do dia grande em casa de Álvaro Vaz, a saber: Álvaro Vaz, Ana Pimentel sua mãe, Feliciano Albuquerque, tratante, sogro de Álvaro Vaz, juntamente com ele confessante; e vivia na Rua Direita e a casa era de António Pilas, estando os referidos e ele confessante em um quarto alto da dita casa, da parte de trás. (2) Temos assim que o mestre ourives Álvaro Vaz ficou sendo o responsável pela formação profissional de Ambrósio de Sória quando o mestre António Gomes abandonou a cidade de Bragança para ir ajudar a sua mãe, presa pela inquisição de Múrcia. E, como era costume, o aprendiz também frequentava a casa do mestre, e muitas vezes era nela que morava. Para além disso, havia “intimidade”, ou seja, parentesco, entre Ana Pimentel e Leonor de Sória, sua avó, as quais se terão declarado entre si como crentes da lei mosaica, segundo lhe disse a sua avó. Estamos, pois, em casa de Ana Pimentel e do filho, na Rua Direita de Bragança, participando na celebração do Kipur, por volta de 1675. Descrevendo o caso, Ambrósio acrescentou que durante o dia jejuaram e “se estiveram encomendando a Deus” rezando orações. E que, no decurso da celebração, Ambrósio falou de uma oração nomeando-a de “Bendito o cravo e a canela”. Ao que o seu mestre, Álvaro Vaz, desatou a rir, no que foi repreendido pelo sogro, Feliciano Albuquerque “que mostrava ser pessoa virtuosa na dita lei”. E então, o mesmo Feliciano Albuquerque recitou a oração referida e por ele apresentada como de “Alabanza (louvor) das criaturas a Deus”, na forma seguinte: Alabante (Louvem-te) Deus do Céu, os anjos, em coro, te bendigam Poderoso nosso Deus, de continuo o digam Alabante os anjos e os arcanjos Alabante os serafins e os querubins Alabante os profetas e patriarcas Alabante os monarcas, as esferas e as estrelas E as coisas mais belas e mais formosas Alabante a tua divina formosura Alabante o céu e a terra Alabante os ares e os mares Alabante os elementos e os tempos Alabante os ventos e as nuvens Alabante os sombrados e os airados Alabante as geladas e granizos Alabante os rozios e os trones Alabante raios e os trovões Alabante os rios furiosos Alabante as feras animais Alabante as águas caídas dos altos céus Alabante as aves que voam no ar com suas asas e cantares suaves Alabante o mar onde estão todos os peixes Te alabe, te bendiga poderoso nosso Deus de continuo te digo Alabante o cravo e açafrão, a pimenta e o gengibre e a canela Alabante o sal e o azeite Alabante os álamos verdes e os limoeiros e as laranjeiras Alabante os anis e os salgueiros Alabante os carvalhos e os montes Alabante as feras e as montanhas Alabante as oliveiras poríferas Alabante as daiarias Alabante las silvas nas silveiras E os frutos nas fruteiras As rosas nas roseiras Alabante as flores formosas olorosas Alabante os campos verdes e viçosos em que pastam os gados Alabante os campos que são criados para sustento das tuas criaturas Alabante todo o nascido e criado Alabante o homem circuncidado à tua semelhança Alabante tu divina Alabanza Alabante o pão e o vinho Alabante o povo de Israel escolhido Em este junto te alaben todas as gentes Os contrechos alabar a nosso Deus Pois é nosso Deus amado, bem merece ser alabado Servido com o coração Alabante a noite o dia Também te alabe esta alma minha sempre por ti amparada e socorrida pois és meu Deus que me alegra todo o tempo espero que me socorras. (3) Antes de prosseguirmos com a história de Ana Pimentel, um pequeno comentário sobre esta oração que não é original, antes se trata de uma adaptação do “cântico dos 3 jovens” judeus, amigos de Daniel, “ministros” do rei Nabucodonosor e que, depois, este mandou queimar num forno superaquecido. Esta sentença resultou do facto de eles se não ajoelharem perante uma estátua de ouro que o rei mandou fazer. Contudo, em vez de estarem feitos em torresmos quando abriram a porta do forno, os jovens estavam de pé, cantando e louvando o Deus dos céus. O facto de em Bragança se recitar este cântico, em finais do século XVII, é importante porque vem contrariar a tese muito divulgada, segundo a qual os cristãos-novos, à medida que os anos passavam e as gerações se sucediam, vendo- -se perseguidos, sem livros e sem rabis e sem a frequência das sinagogas, iam adulterando a doutrina e as cerimónias judaicas, esquecendo a lei fundamental expressa nos livros do Testamento Velho. Na verdade, apesar de todas as contrariedades, a nação de Bragança mantinha, com relativa pureza, o conhecimento da lei mosaica. Aliás, temos conhecimento de vários livros que clandestinamente circulavam entre eles e de “mestres” que vinham disfarçados de mercadores a dar instrução religiosa. E também eram frequentes as deslocações de homens de Bragança à França, Itália e Holanda onde iam instruir-se e circuncidar-se, sendo que a circuncisão era por eles considerada como essencial para a salvação. E não por acaso, no “cântico dos 3 jovens”, um dos versos diz: - Alabante o homem circuncidado, à tua semelhança. Curioso que este verso não pertence ao texto bíblico original e terá sido acrescentado em tempos de perseguição inquisitorial! A semelhança com Deus obtinha-se apenas com a circuncisão!