De Ernesto Rodrigues, veio a lume a obra poética que faltava na lírica portuguesa de hoje – Perseu. Digo que nos faltava ao constatar que esta poesia rompe todos os padrões que possamos conhecer, oriundos que sejam dos clássicos (antigos ou renascentistas), dos românticos, dos modernistas ou de quaisquer outros, que dos contemporâneos é o poeta seu representante maior. Motivado por Perseu, titã da mitologia grega, filho de Zeus e da mortal Danae, e inspirado por uma ninfa tágide, tem o mérito de conjugar, neste poemário, a cultura grega da Antiguidade com a poesia lusa dos tempos hodiernos. Há um primeiro capítulo metapoético – Da poesia. Primeiro porque os dois poemas iniciais, quase desgarrados (Sílabas e Caos) não formam tema algum e serão prolegómenos dos tratados que preenchem a obra e prenúncio do estilo rebelde que os vai marcar. Em Ernesto Rodrigues, a poesia acontece “Quando, por Março, erro da cidade / aos campos, silabando vida, bom / dia às aves, ao rumor de ser, / de súbito, no verde, como nunca / vi, amarelo-seda vem até /meus dedos…”. Poesia que está imanente na vida, na natureza, no ser… e que se consubstancia, basicamente, em sonetos e nos versos decassilábicos que constituem a sua essência e nos mesmos decassílabos de outras formas poéticas. Poderemos afirmar que é nestes versos que reside a força de sentir e expressar a natureza bela. Natureza, no sentido mais vasto, total, entenda-se, a humana e a imaterial, os campos, os rios, o mar, a arte e os sentidos. Natureza das coisas que nos fazem viver e nos preenchem a vida e que dela rememoramos, mais que tudo, a beleza: “Beleza – eu não sei como dizê-la, / tão jovem é, tão grácil, que nem Vénus…”. A beleza está na juventude e esta permanece eterna nos deuses, sendo ambas, a juventude e a beleza, a sua condição essencial (deixando de parte os seus pecados, considerando que os deuses foram feitos à imagem e semelhança dos homens). Depois, há a beleza das palavras ditas por sentidas, e nisto reside a essência da obra, ainda que, por vezes, inatingível (para os mais desatentos). E por isso é poesia, na qual, assim como em uma qualquer pintura ou em uma qualquer obra de arte, podemos ler o que mais nos impressiona, discorrer e ler e descobrir o que nem o próprio poeta em tal teria pensado. Se a poesia é a linguagem da paixão, viva e animada, escrita sob norma pré-estabelecida ou livre, regra geral, Ernesto Rodrigues optou pelo soneto e cumpre a norma para esta forma poética. À sua maneira, com recurso às liberdades poéticas (violações da norma?) como é timbre de um poeta rebelde. Não obstante, o decassílabo é intocável e é cumprido com rigor, que neste âmbito a liberdade foi suspensa. De liberdades continuou a usar o poeta na translineação em final de um verso para o seguinte. Mantendo-se o decassílabo, a rima e a acentuação. Senão veja- -se o poema IV de “Do amor incompleto”: “Sentes? Há um perfume no meu corpo, / que desce madrugada. Redivivo / poema, irei logo onde for pos- / sível para de novo estar contigo”. Em matéria de fuga à norma, constata-se um impensável e inédito desafio ao leitor nos últimos dois sonetos da obra: a translineação une o XIII ao XIV, sendo que o primeiro se apresenta violador da norma (será soneto sem a rima adequada?) e o segundo rigorosamente respeitador do modo parnasiano. Contudo, é neste duplo soneto que assenta a conclusão – a salvação de Perseu, que coragem não lhe falta, perante os perigos maiores que residem ofuscados pela rara / beleza da Medusa. Liberdades poéticas. O amor é, para qualquer poeta, um tema incontornável. Porém, em Perseu, distingue-se o “amor” do “amor incompleto”. Bizantinices ou subtilezas de poeta-filósofo? Nem uma nem outra destas propostas de justificação se podem aqui adequar. Obviamente, a resposta perpassa pela linguagem da paixão verdadeiramente vivida, a que chamamos poesia do sentimento amoroso: “Há muito tempo foi; resta-me só / a cor do teu sorriso; nem sequer / a pele nua, bela, que beber / bebo aqui. Quis-te minha: nem lazer, nem sofrimento. Dura foste. Oh, / se a terra não soubesse amar o pó…”. Por isso, já nem a beleza desperta sentimento daquilo que sentiu; a relíquia que foi assemelha-se agora a uma antiga nevrose. E então, só o adeus pode confortar o poeta. Mas, por outro lado, no tema “Do amor”, as quadras e tercetos decassílabos bem estruturados segundo a norma do soneto, ou em elaborada poesia de dísticos com a mesma métrica (porque se encaixam nas mesmas estrofes), exprimem a natureza bela do amor vivido, amor supremo pelo qual até a vida se pode entregar: “Bebido teu nocturno beijo, / vou dizer às flores como sou feliz”. Ernesto Rodrigues conseguiu, neste capítulo, subverter a ideia de que o poeta tem de ser necessariamente sofredor. Não conseguiu fingir (porque sofrimento não tem aqui lugar), facto que configura, talvez, mais uma violação da norma: o poeta é feliz porque “fazer amor é supremo bem”. E aqui, neste soneto IX (será influência do canto IX de Os Lusíadas?) os versos respiram sensualidade, luxúria, fogo, felicidade. Em “Do amor” representa-se o belo em formas de felicidade completa. Para longe vai a ideia de poeta infeliz. Encerra a obra o tema cujo nome lhe dá o título – Perseu. Herói da mitologia grega, era uma espécie de semideus, por ser filho de Zeus e de Dánae, neto de Acrísio, rei de Argos. O poeta logra unir dois factos da nossa cultura ocidental, muito afastados no tempo e no conteúdo: o mito de Perseu da cultura helénica e a mais avançada poesia lusófona. Para lograr este desiderato, ele próprio se faz “narrador participante”, como se pode constatar logo no poema I do capítulo: “Busquei em terra, mar, fogo, ar, cheiro / de parca, mas ninguém a viu. Derroto / a sorte, que persegue fracos, quando / outro destino urdo – de que sou”. A mitologia reza: um oráculo não-identificado previu que um neto do rei Acrísio o haveria de matar. Por isso, mandou lançar ao mar mãe e filho (Perseu), dentro de uma caixa a servir de barco: “Cauteloso (não sei inda / o que isso é) face ao pai de / minha mãe, que não gosta de mim…”. O poeta identifica-se com Perseu que recebeu ordem do amante de Dánae, sua mãe, para cortar a cabeça de Medusa. Elimina seus medos, ou por outra, “tira do medo forças” e enfrenta a beleza da ninfa e seus longos cabelos, vendo-a apenas por meio de instrumentos cedidos pelo deus Hermes (uma espada), por Plutão (uma bolsa e o elmo), por Atena (escudo bem polido) e pelas traiçoeiras ou amedrontadas górgonas (fazendo dele Pégaso com asas nos pés), e corta-lhe a cabeça. Regressou ao ponto de partida e entregou a cabeça de Medusa a Atena. O risco era tremendo: a deusa, como castigo pela entrega de Medusa, em amor, transformara os seus longos cabelos em serpentes e a terrível sina de petrificar quem a fixasse no seu olhar. Metaforicamente, o poeta reconhece que “perigos maiores / vivem os ofuscados pela rara / beleza da Medusa, cuja lisa / e longa cabeleira prende quantos / não olham ao ser, mas ao fingimento”. E assim encontrámos a simbologia do mito de Perseu, aliado ao de Medusa: o medo reside naqueles que penetram na essência profunda dos seres, desvalorizando a superficialidade das coisas vãs. O medo existe apenas na mente dos fracos: “Com cabeça, olhemos o céu, sem / falsas defesas… Ser tudo ou nada”. Segundo a lírica de Ernesto Rodrigues, eis o mito de Perseu.
António Pinelo Tiza