Seg, 09/11/2020 - 23:24
Foram quatro anos difíceis de engolir para os que acreditam que a democracia é o destino político da humanidade, apesar das dificuldades em cada século, de cada década, de cada dia, num mundo que não se muda com passes de magia, apesar das aparências que nos distraem das obrigações da cidadania.
A semana que findou parece justificar algum alívio, mas o risco de vermos desagregar os modelos democráticos um pouco por todo o lado continua a ser ameaça real neste século XXI do nosso descontentamento.
É verdade que assistimos a um exemplo notável de cidadania, num país que foi pioneiro na construção dos sistemas democráticos modernos. No entanto, não é inteligente descartar simplesmente quase metade da população que, pelos vistos, se sentiu confortável com uma liderança instável, oportunista, dada à mentira, arrogante como todos os ignorantes, cruelmente despudorada como só ouvíramos contar nas lendas sobre alguns dos imperadores da velha Roma, mostrando que, de facto, a realidade pode fazer empalidecer a ficção.
Os próximos tempos trarão certamente novos espantos, quando precisávamos de tranquilidade para observar os caminhos percorridos e repensar as soluções que se encontraram, afinal suportadas em erros claros, motivados por convicções e preconceitos, que escondem a vida real, para além das ilusões do crescimento económico, da saga tecnológica, da vertiginosa evolução da ciência, que não demonstraram poder mudar tanto como gostaríamos a essência da condição humana.
Entretanto, alastra a incerteza sobre o futuro, imediato ou longínquo, perante a evolução da crise pandémica, que revela a desorientação geral perante a ineficácia de medidas hesitantes e contraditórias, que agravam ansiedades, desacreditam a condução política e, no limite, instalam o caos.
Volta-se agora às curvas que se querem chatas para que haja Natal. O mesmo se disse antes do Verão, prometendo uma nova normalidade. Então vimos Presidente e Primeiro Ministro a mandarem a malta para a praia e para os restaurantes, ministros a garantirem que os transportes públicos eram seguros, que a máscara era útil em espaços fechados, que a bola, mais dia menos dia, contaria com público, que as festas, respeitando algumas regras, não faziam mal a ninguém, que o futuro sorria ao turismo, um rol de maravilhas.
Naturalmente, se o objectivo for somente empurrar a curva para baixo, voltaremos ao mesmo lá para Janeiro ou Fevereiro, com as eleições para a presidência a decorrer num ambiente e de desânimo, talvez de raiva, o que não augura nada de bom para a participação dos cidadãos numa decisão política de reconhecida importância, se quisermos manter o modelo constitucional em que vivemos desde 1976.
A falta de clareza dos responsáveis políticos na situação difícil que se vive não contribui para que a racionalidade e a serenidade sejam os necessários instrumentos a usar neste tempo histórico, que deixará marcas indeléveis nas gerações que aí vêm, para o bem e para o mal, correndo-se o risco de um recrudescimento da sementeira do obscurantismo, donde se colherão os frutos da irracionalidade, da superstição, do fanatismo e de outras tantas misérias que quase inviabilizaram a possibilidade de nos sentirmos como a comunidade de destino que é a humanidade.
Teófilo Vaz