Quartel em Abrantes

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Bons dias, boa gente. Espero que se encontrem de boa saúde. Nesta altura não há muito a dizer nem há muito para noticiar. Bastaria pôr um daqueles placards a mostrar-nos os números que interessam saber para irmos continuando a rogar para que desçam tão depressa quanto possível. No entanto, o serviço público que um jornal presta à sua comunidade não se limita a mostrar notícias, mas também a manter a sua população ciente das exigências do momento e do que tem a fazer para o enfrentar. Deste modo, começo por endereçar um grande bem haja à intrépida e laboriosa equipa do Jornal do Nordeste que ao longo deste processo ainda não parou de nos informar, consciencializar e fazer boa companhia. Não ganho mais nem menos por este preâmbulo, mas considero justo salientar o trabalho a seu dono e deixar estas palavras de apreço numa altura em que todos carecemos delas. De resto, temos de cumprir as medidas, acompanhar o que as autoridades vão recomendando e ir aguentando o tranco o melhor que podemos, agarrando-nos ao tangível e ao intangível. É natural que nestas alturas bastante sensíveis emocionalmente as pessoas sejam mais dadas a falar e a escrever num tom mais exasperado. Entre os apocalípticos dias do fim e o nada será como dantes venha o mafarrico e escolha. Eu não sei se haverá muitas pessoas com a mesma opinião, mas ao contrário do que tanto se apregoa, acredito que tudo será absolutamente igual depois desta onda passar. Certamente vamos estar mais preparados para outras vagas do género por estarem mais frescas na memória, mas de resto pouco ou nada irá mudar. Quando estamos a falar com os nervos, de mãos juntas aludindo aos favores supremos de Santa Bárbara, a penar na circundante via sacra entre a sala e o quarto, nesse momento tudo prometemos, tudo será totalmente diferente, em tudo iremos mudar. Amigos, se há pessoas a beijar o menino em plena pandemia, no meio deste medo que se vive há gente que vai de criança ao colo e tudo dar a beijoca da ordem da tradição pascal. Então imaginem daqui a um tempo quando não houver epidemia. A economia não terá outro remédio se não subir e além disso não vão faltar afectos, nem beijos nem abraços, por isso não catastrofizemos. Mas o tudo na mesma como a lesma que se recomporá daqui a uns tempos nem o digo por causa destes episódios de incumprimento. Digo-o porque basta dar uma vista de olhos pela nossa história e para a história do mundo, só a contemporânea é suficiente. Tudo muda e tudo é para sempre, mas o “para sempre” acaba sempre muito antes do tempo. E os imprevistos que surjam, não são nada que etse mundo não tenha visto antes. Vejam o nada será como dantes do pós-Segunda Guerra, as organizações que se criaram, as cooperações e amizades que se firmaram, a pujança económica que brotou e olhem como está a Europa passado tão pouco tempo, dividida, falida, segregada. E o mundo encolhido por crises e terrorismos a pressentir a cada dia que passa o pânico de guerras ainda mais destruidoras. Quantos juraram a pés juntos que nada mais seria igual quando novos amanhãs se levantaram e portas de Abril se abriram e depois viram chegar FMI’s a vir dar a mão uns após os outros, a inveja e mesquinhez franciscanas que nunca deixaram de castrar, os 3 F’s que nunca deixaram de alegrar, a mesma sangria de juventude a pôr-se ao fresco de saco às costas. Quem disse que nada poderia ser como dantes no que à desertificação do interior diz respeito enquanto implorava primeiro por condições de vida, depois por estradas e por aviões e no fim já só por gente que chegue de qualquer jeito? E a Europa, terra de migrantes e emigrantes, que se espalharam, que se misturaram, que fundaram países e ajudaram outros a reerguer-se e por hora se tornou terra onde se fecham as portas aos que agora passam as mesmas necessidades e onde se vai à mala do carro para sacar das soqueiras e dos tacos de baseball dos extremismos para os apontar a esses, ao próximo e a nós mesmos.

Não há para sempres nem há amanhãs que nunca mais se tornem o mesmo na humanidade. Não há impérios que sempre durem nem epidemias que nunca acabem. Tudo é um mesmo ciclo de manhã à noite, das nove às cinco. O ser humano pouco mais pode fazer se não voltar a ser humano e retomar a sua vidinha, voltar aos seus probleminhas do quotidiano, ora dentro de quatro paredes, ora fora delas. A economia vai descer, mas fiquem descansados porque daqui a uns tempos tudo voltará à mesmíssima regularidade. No curto prazo haverá alguns esforços e cuidados enquanto tudo estiver vivo na memória, mas ainda assim tudo voltará ao normal e provavelmente ainda com mais força de viver a normalidade. Depois de o pau deixar de ir e vir por aí à solta e as costas folgarem, tudo assentará como de costume. Quartel em Abrantes, tudo tão igual como dantes.

Manuel João Pires