Seg, 20/04/2020 - 22:07
Ao longo do tempo pensadores da profundidade, muitas vezes boas almas, outras talvez nem tanto, foram deixando sinais de que as certezas sobre a condição humana, as capacidades de intervenção na realidade e de compreensão do que nos rodeia eram relativamente limitadas, o que nos conduziria, mais dia menos dia, a esmagadoras desilusões.
Apesar do arsenal tecnológico, científico, filosófico, político e económico de que dispomos, continuamos a descer aos vales de lágrimas que nem os criadores da Salvé Rainha terão alguma vez imaginado.
Ainda há pouco tempo o que estava a dar no mainstream das sociedades ditas desenvolvidas era a festa do prolongamento da vida, até da aproximação da imortalidade.
Nunca se tinham conhecido tantos progressos, o corpo biológico estava a caminho de ser entendido como uma máquina, capaz de ver substituídas peças fundamentais, como acontece com os automóveis, que garantiriam o tal paraíso na terra, porque, afinal, parece ser nesse que agora acreditamos.
O optimismo retumbante postergava dados inconvenientes, que abalavam etéreas fantasias. Constatava-se que chegar ao cento de anos era cada vez mais comum e havia quem arriscasse, para daqui a poucas décadas, a meta do século e meio e um pouco mais além, os trezentos anos, sem tirar nem pôr.
Só que o universo que se observava era restrito, localizado, em condições ideais, asséptico, o que não passa de fantasia deleitosa, porque o mundo real é muito mais duro do que parece.
Soava estranho que tais profissões de fé no admirável mundo novo não quisessem ver que mais de três quartos dos viventes não seriam nunca contemplados, nem sequer com a sucata que sobrasse desse Olimpo, tão mítico como o que a cultura clássica nos legou.
Agora voltámos ao choro e ranger de dentes que os anunciadores do apocalipse nos destinaram, sentimo-nos desamparados e, sem novidade, vamos cedendo à tentação do salve-se quem puder, sempre convencidos que os que ficarem terão tempo, até à próxima tragédia, para viver com alguma tranquilidade, o que nos remete para a essência mágica da nossa relação com a vida que, em termos simples, se resume a uma questão de sorte e azar, com destino e fatalidade a tomar conta dos dias, das horas, de cada momento, roendo-nos os esteios da racionalidade.
Muito mais do que a presunção de aspirantes a semi-deuses precisamos de tomar consciência de que a complexidade do mundo não se compadece do simplismo com que o tratamos, nem do hedonismo que nos torna cegos aos problemas dos outros e às ameaças que se perfilam nas nossas vidas.
O tempo que nos espera pode revelar o que de bom e de mau continua indissociavelmente ligado ao primata que somos. Celebrar-se-ão no futuro as virtudes reveladas, mas também corremos o risco de voltar a depender do instinto, com tudo o que pode trazer de regresso à selva humana.
Lembremo-nos de há um século: alguns anos depois de uma pandemia demolidora, em 1918/19, viveram-se décadas de irracionalidade que não deixaram boas memórias.