A internet faz de Portugal um país muito mais conservador. Um tipo de conservadorismo feito com um novo lápis azul. Não um qualquer, mas um lápis azul-bebé comprado com o selo de comércio verde, justo e sustentável feito de material biodegradável e cuja coloração é obtida através de uma fibra vegetal e orgânica produzida sem recurso a quaisquer aditivos, corantes (exceptos os naturais) ou fertilizantes. E ninguém faz a mínima ideia se o lápis é mesmo feito dessa forma ou não, mas cremos que sim, postamos a foto do selo verde a comprová-lo e dormimos descansados pelo cidadão responsabilíssimo que somos. Tudo é parecer. E é pouco mais do que isso ser-se vanguardista hoje em dia, um amontoado de fachadas e novos lugares comuns porque ninguém defende genuinamente coisa nenhuma e ninguém prescinde realmente de nada. Principalmente das redes sociais onde tudo está lá dentro. Os temas que se discutem sucedem-se como os pratos do dia dos almoços dos restaurantes. E as pessoas exaltam-se, indignam-se, revoltam-se e empunham a prosódia dos teclados. Depois acabam de comer à pressa e vão embora. No dia seguinte o prato é outra coisa qualquer. Grelhada mista? Venha ela! Nós portugueses tornamo-nos amorfos, não nos sabemos expressar de outra forma. Na Internet somos referência dos direitos e deveres, exemplos de bravura e sensibilidade, cidadãos mais-que- -perfeitos da moral e dos costumes do nosso tempo. Fora da internet ficamos sem jeito, sem força, nem sequer tem piada. Quando se espreme toda essa energia cá para fora redunda em três gatos pingados meio perdidos com os outros a fazerem pouco, sem nunca saírem lá de dentro, debruçados no parapeito da janela da internet. Cá fora é o vazio, o deserto, o silêncio, um gigante calcanhar de Aquiles. Aos meios de comunicação pouco lhes resta para sobreviver se não vasculhar e ressoar todo esse repetitivo e inócuo conteúdo. Parte dois: a opressão do neo-conservadorismo, a imposição dos neo-conceitozinhos, o domínio dos neo-estilos de vida. A mesquinhez portuguesa de sempre vestida com a roupa mais fashion do momento. Hoje em dia já não falamos sem medir as palavras, sem ter cuidado para não pôr o pé em cana verde. Uma palavra errada e o mundo cai-nos em cima. A liberdade de expressão está presa a uma pesada régua de chumbo que mede cada expressão, cada palavra, o milímetro de cada vírgula. Vivemos num clima de profundo conservadorismo. Julgamos que não ser conservador é discorrer de cor o novo discurso formatado (a neo-cassete) sobre um certo leque de temas: do ambiente às questões de género e das questões de género ao ambiente; direitos dos animais, pouco mais. E ser open mind é estar do lado dos que têm esta neo-cassete na ponta da língua, do lado certo da teoria porque a prática nem interessa. Os cronistas e opinadores tornam-se previsíveis. Antes de os lermos já sabemos o que vão dizer. Tudo se torna previsível, tudo é parecer bem. Mas há uma coisa para a qual não somos minimamente tolerantes, receptivos ou sequer compreensivos: para as ideias daqueles que pensam diferente, aqueles que não se identificam com estas concepções, os que dão escorregadelas nas novas maneiras de se dizer as coisas, os que por algum motivo não se enfileiram nesse lado certinho de todas as coisas. Esses esmagamo-los, esfolamo-los e chacinamo-los. Se a Greta vem é para gostar dela, é para escrever que se gosta dela, quem não gosta é desumano e execrável. Disseste maricas? Que asqueroso, homofóbico, pederasta disfarçado. Não gostas de gatinhos nem cachorrinhos? Devias morrer asfixiado por um ataque de sarna. Conservadorismo opressor, coercivo, capaz de arruinar vidas quando as flechas apontam na mesma incriminatória direção. Não há contraditório, não há segunda oportunidade. Mais rápido que a própria sombra, muito mais rápido que todos os tribunais juntos. Sentença inquisitória e extrema unção. E com isso um certo medo. Um medo, como os outros, que cresce imperceptível e se apodera. O medo de pisarmos em falso, de sermos nós o próximo alvo a abater por descuido ou distração. Então medimos muito a liberdade de expressão, temos cuidado com as mensagens que enviamos, até já com o que fazemos em privado. Para falar começamos a pôr a mão à frente da boca como já fazem os jogadores de futebol. Poucos são os que ainda ousam expressar opiniões contra- -corrente. Vivemos coagidos, condicionados. Condicionamo-nos. Em nome de quê? Esquecemo-nos de que aquilo que define a democracia não é (apenas) sermos tolerantes às realidades do nosso tempo. O que define a democracia, e eu falo com especial conhecimento de causa pelo país onde vivo, é, como dizia o filósofo, lutarmos pelo direito de os outros defenderem as suas ideias, independentemente de concordarmos ou não. Não havendo isso, havendo um só lado, uma só representação, um só altifalante, seja ele qual for, é perigoso. Falamos do populismo, mas ignoramos que este clima contribui bastante para isso. Não são só os outros nem as vicissitudes das sociedades dos outros, é também este clima global, a universalidade destas ideias e conceitos questionáveis como os outros (mas que lidam mal, espezinham o questionamento); a impressão de que estes ideais de uma reduzida elite do planeta devem ser a regra em todos os cantos do mundo, quanto antes; este novo pensamento único, lobo em pele de cordeiro, que não discute ideias, mas ataca pessoas e se nos impõe abrupto e agressivo através de grilhões que menosprezamos mas que têm consequências que podem ser tão lancinantes como os de ferro. Repito, em nome de quê?
Manuel Pires, Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen Cantão Guangdong – China