Cronicando - Morra mais um

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Há pouco tempo, à mesa do café, comparavam-se os cronistas de segunda a serial killers: começam a escrever a medo, mas, com o passar do tempo, tornam-se mais ousados até perderem a vergonha e deixarem de se preocupar com o que se possa pensar do que escrevem. Já os de primeira, impõem-se desde o primeiro instante e mantêm sempre o mesmo estilo. Apontava-se Lobo Antunes como o expoente máximo desta categoria porque, desde sempre, fiel a um estilo desbragado assim se conserva até hoje. Os de segunda serão, pois, os que garatujam na imprensa regional, escrevem por devaneio e ninguém os leva a sério. É a estes que pertenço. Porém também estes têm um estilo. Desde o início, pesquiso e procuro fontes antes de publicar, e se o texto está mais acintoso resulta apenas de uma maior sensibilidade às causas e de uma liberdade que me tornou associal, privilegiando a solidão, ao mesmo tempo que me devolveu o prazer de um bom café com excelentes amigos, ou de um copo noite dentro, e se envolto em boas anedotas é o mais próximo da perfeição que, simples mortal, poderei desejar. Mas vamos ao que interessa…

A pretexto de querer tirar a carta de trator, dirigi-me a uma escola de condução. A surpresa da administrativa foi só uma. Não esboçou um sorriso porque é profissional, mas lá foi dizendo que aqui, capital de distrito, não é possível e muito menos fazer exame, simplesmente porque não se fazem. Se quisesse, a escola levar-me-ia a Braga onde, obrigatoriamente, teria de demonstrar as minhas habilidades a conduzir um trator com atrelado. Com ar ingénuo, sempre fui dizendo que nunca estive em cima de nenhuma dessas máquinas e, quando muito, a uma distância de segurança de dois metros pelo que me seria impossível mostrar tais habilidades nem que fosse em sob a proteção do Bom Jesus. Perante isto, pedi informações noutro lado de onde recebi missiva a dizer que, como tenho carta de condução de ligeiros, e até já conduzi pick-up e carrinhas de nove lugares, não necessito de me preocupar com carta de trator. Repito que quero mesmo aprender e que nunca conduzi tal máquina. Menos amistosos, sempre disseram que há quem desde os cinco anos conduza essas máquinas sem problemas. Uma maneira simpática de me chamarem incompetente, parvo e tudo o que possa estar neste campo semântico.Fico na mesma. O certo é que, como filho da terra, e descendente de Anteu pela origem transmontana, começo a sentir necessidade de ocupar os fins de semana com algo mais que não seja o deambular pelos campos. Procurei ainda uma daquelas ações de formação de trinta e cinco horas: fiquei a saber que candidatos há, o que é difícil é encontrar formador e máquina.

Dados saídos recentemente colocam Portugal no 3º lugar dos países europeus onde mais se morre em acidentes de trator. Entre 2013 e 2017 foram registadas 358 vítimas. Os dados de 2018 ainda não foram disponibilizados mas, com toda a ce1rteza, a linha será ascendente e 2019 continuará a negra trajetória já que, só numa semana, foram, pelo menos 3 os acidentados. Os peritos apontam sempre as mesmas causas: idade, cansaço, declives e, sobretudo, excesso de confiança. Poucos ou nenhuns se referem à idade das máquinas pois, de acordo com os dados disponibilizados, mais de 50% têm mais de vinte anos, não tendo estruturas de proteção nem automatismos de que tratores mais novos são dotados.

Também não será por mero acaso, que estas incidências ocorrem em regiões de minifúndio, estando Bragança, Viseu e Guarda no top dos acidentes. Não deixa de ser irónico que, a todas as variáveis, se junte ainda a falta de recursos económicos que possibilite a renovação do parque e a impossibilidade de quem quiser adquirir conhecimentos ter de ir a… Braga.

Entretanto, ficou a saber-se que o Despacho n.º 1819/2019 de 21 de fevereiro regulamenta a obrigatoriedade de formação para quem pretenda conduzir veículos agrícolas, ao mesmo tempo que elenca, em anexo, os conteúdos modulares. Dos seis módulos, apenas dois se orientam para a prática, fruto das novas formas de entender o conhecimento que se esquece de que se aprende a fazer fazendo.

Independente do que se ensina, como se pode aprender se não há mestre nem escola? Teremos de continuar a ser autodidatas e a aprender a não morrer numa terra para a qual se fazem leis que é impossível aplicar. E se o fim é a morte, que importa se acontece aos 50, 60 ou setenta anos? Quantos menos estiveram nestas terras abandonadas, menos gastos para a metrópole. E, enquanto se aliviam consciências, que toquem aos finados por mais um.

Raúl Gomes