Menina e moça

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“Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe...” escrevia Bernardim Ribeiro encarnando uma personagem feminina. Nessa altura era impensável que uma mulher, por mais talentosa, sapiente e interessante que fosse, pudesse escrever uma novela, um poema ou um texto. Esse direito não estaria, seguramente, na parte superior da lista dos direitos que as mulheres teriam de conquistar desde o século XVI. Sendo milenar a subjugação feminina, não me parece totalmente desadequado olhá-la nestes cinco séculos de humanismo em que a racionalidade e antropocentrismo conquistaram a nossa civilização. São gigantescos os passos dados pela humanidade. Os direitos das mulheres também evoluíram muitíssimo. Reconhecendo a grande evolução da condição feminina nos últimos cinco séculos, não é possível ignorar que, neste campo específico, se avançou mais nos últimos cinquenta anos do que nos quinhentos anteriores. O mais espantoso, contudo, passa por ser impossível deixar de reconhecer que, mesmo assim, há tanto caminho ainda para percorrer.

É ainda preciso que o mérito se sobreponha ao sexo, que os salários percam toda e qualquer conotação de género, que as chefias reflitam a realidade laboral (há atividades em que à esmagadora maioria feminina corresponde a superioridade flagrante de lideranças masculinas), que as quotas deixem de ser necessárias, que, enfim, desapareça, de facto, de jure e do próprio pensamento natural, toda e qualquer discriminação para com todas as mulheres, independentemente da sua condição, origem ou raça.

Mas é sobretudo urgente, imperioso e inadiável erradicar, de vez e para sempre, toda e qualquer violência sobre as mulheres, sejam esposas, namoradas, irmãs, familiares, amigas ou apenas conhecidas. É perfeitamente inaceitável, vergonhoso, incivilizado e desprezível que, em 2019, antes do final do mês de fevereiro já tenham perdido a vida, desde o início do ano, uma dezena de mulheres. Tão mais intolerável quanto sabemos ser esse facto a fina ponta de um icebergue da imensa violência que ainda se abate sobre as mulheres.

Obviamente que, havendo necessidade de melhorar o edifício legislativo, melhorar a atuação das autoridades e sistemas de apoio, mudar e afastar dos centros de decisão poderes masculinos e misóginos, interditar juízes preconceituosos e trogloditas, tal não basta. Esse é já o patamar mínimo da decência. A contemporaneidade, a civilização, o humanismo do século XXI, impõe muito mais. É necessário revolucionar mentalidades, extorquir toda a raiz da discriminação, educar para a igualdade real e natural. É uma tarefa comum e partilhada em que a condenação do atual status quo, sendo obviamente essencial, é pouco, é insuficiente. É uma tarefa de todos sem qualquer exceção a começar por cada um de nós, porque nesta história há poucos inocentes. A cada palavra que escrevo vejo um dedo acusador na minha direção, mesmo que nunca tenha maltratado fisicamente nenhuma mulher, condene, sem qualquer rebuço toda a violência doméstica, reprove nauseado acórdãos abjetamente sexistas e marialvas, ainda pactuo com realidades machistas, com anedotas que “perderiam toda a graça” se os protagonistas fossem do sexo oposto e não saio para a rua a gritar a plenos pulmões que esta é uma realidade que me envergonha e que urge mudar.

Haverá quem ache que, tal como noutras matérias em que é preciso uma revolução civilizacional, que é precisa uma nova geração para solucionar este grave problema. Errado! As mulheres que a exigem não têm mais nenhuma geração para viver! Algumas delas, infelizmente, já não têm geração nenhuma! Lamentavelmente ainda hoje é necessário escrever por outrem “Menina e moça me levaram de casa de minha mãe... Muito contente fui em aquela terra, mas, coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo... vi tantas coisas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior”

No renascimento as novelas no feminino eram escritas por homens pois só eles tinham acesso às ferramentas materiais e intelectuais que a elas estavam vedadas. No século vinte e um, algumas “novelas femininas” podendo adquirir forma literária por qualquer autor, homem ou mulher, mas continuam a necessitar de ser contadas por outra pessoa porque a protagonista já não a pode contar! No século XXI o que se impõe é que essas novelas deixem de ser escritas, por representarem realidades passadas e irrepetíveis.

 

José Mário Leite