A mãe era originária de Barcelos e dava pelo nome de Benta Dias. O pai, Garcia Álvares, nascido em Bragança, formou-se em medicina. O casal residiu algum tempo em Bragança e ali terá nascido o filho Luís Álvares. Mudaram-se depois para Vila Flor, onde o Dr. Garcia exerceu as funções de médico do partido. (1) E em Vila Flor, pelo ano de 1554, nasceria o segundo filho do casal, batizado com o nome de Francisco Rodrigues da Silva.
Certamente que se tratava de uma família importante, pelo que, feitos os estudos preparatórios, os filhos rumaram à universidade de Salamanca. Luís formou-se em medicina, enquanto o Francisco se licenciou em advocacia.
Os dois irmãos casaram com duas irmãs, filhas de um advogado de Moncorvo, o Dr. André Nunes. E se Luís Álvares e a mulher, Branca Nunes foram morar para Vila Flor, Francisco Rodrigues da Silva e Ângela Nunes ficaram vivendo em Moncorvo, em casa de André Nunes.
Em Setembro de 1580 na vila de Moncorvo houve “alevantamentos” populares pelo Prior do Crato. A liderar o movimento estaria o Dr. André Nunes e, por isso, foi preso, por ordem do corregedor Diogo Dias Magro, que passou também ordem de prisão contra Francisco Rodrigues da Silva que, entretanto se ausentou para Vila Flor e viajou para Viana do Castelo onde seu irmão Luís e a cunhada tinham, entretanto, estabelecido morada.
Com o “juramento de bandeiras” pelo rei Filipe II de Espanha e a saída do corregedor Magro, em outubro seguinte, a tranquilidade voltaria a casa de André Nunes e Francisco Rodrigues regressaria também. E ele e o sogro retomariam a atividade profissional de advogados; este como proprietário do cargo de procurador da correição e aquele nomeado pelo sogro, coadjuvando-o ou substituindo-o. Adivinhava-se, pois, um futuro profissional muito brilhante para o jovem advogado Francisco Silva.
E como procurador, competia-lhe acompanhar o corregedor pela comarca, significando isso que ele se tornava conhecido nos auditórios dos vários concelhos da região. A título de exemplo, e porque foi acusado de guardar o Kipur de 1582, veja-se a seguinte declaração por ele proferida:
- Provará que no mês de setembro de 1582 o réu andou pela comarca da Torre com o corregedor dela, desde o princípio de setembro, e partiram a uma sexta-feira e chegaram um sábado à vila dos Cortiços e no domingo estiveram em uma boda do licenciado Gaspar Dias e na dita vila estiveram e residiram todo o mês de outubro e ele réu se achou ali sempre presente e não saiu dali, requerendo nas audiências e sendo este lugar 8 léguas da Torre. (2)
Situemo-nos agora em Moncorvo em março de 1583, quando ali esteve em visitação o inquisidor Jerónimo de Sousa (3) e no seguimento da qual se deu início a uma enorme vaga de prisões em Vila Flor e Moncorvo, nela se incluindo toda a família de André Nunes, (4) à exceção da filha Isabel da Mesquita e do genro e sobrinho, o Dr. Gaspar Nunes, médico, que se abalaram para a Galiza e dali chegaram ao Perú.
Acompanhemos agora Rodrigues da Silva, que foi conduzido pelo solicitador do fisco, Domingos Camelo, à cadeia da inquisição de Coimbra, onde foi entregue em 19.7.1583.
Impossível analisar aqui o seu processo que consideramos verdadeiramente exemplar. Na verdade as denúncias de judaísmo feitas contra ele são débeis, se as compararmos com as dos outros membros da família. Uma delas foi feita pelo irmão, Luís da Silva, dizendo que os dois “algumas vezes praticaram sobre a vinda do Messias e diziam que não era vindo”. Outras foram feitas por Diogo Nunes, tio de sua mulher, irmão de André Nunes, dizendo:
- O ano passado, na véspera de S. Miguel de Maio, foi ele denunciante em companhia de Francisco Rodrigues da Silva à feira de Vila Nova de Fozcôa e se tornaram para a Torre e vieram jantar à Veiga de Vila Nova (Pocinho) na Venda da Judia e a merenda que uma cristã-nova lhes deu foi toucinho para comerem e eles comeram. E depois de jantar, vindo pelo caminho, lhe veio dizendo o dito Francisco Rodrigues da Silva que comia toucinho por não poder deixar de o fazer para o não entenderem e que lhe sabia muito bem (…) E poucos dias antes que prendessem ao dito André Nunes, se achou em sua casa, à tarde, às horas da ceia. E o dito Francisco Rodrigues da Silva ceava um coelho e Ângela Nunes, sua mulher, não queria comer dele e posto que ele a importunava e agastava por ela não querer comer; e André Nunes disse que comesse e que fizesse o que lhe mandava seu marido; e então ela comeu (…) e André Nunes andava maldisposto de cólica e comia galinha cozida.
Resta dizer que todas as denúncias contra o jovem advogado foram feitas por familiares seus, igualmente presos. De contrário, ele não denunciou ninguém e sempre negou todas as acusações que lhe faziam, apresentando uma defesa verdadeiramente assombrosa. Dela, vejamos apenas um ponto, que põe em causa a própria justiça inquisitorial, contrária à justiça episcopal.
Com efeito, argumentou R. Silva que em cada 3 anos, a vila de Moncorvo era visitada pelo arcebispo de Braga e em cada ano era visitada pelo vigário-geral do arcebispo. Pois, continuava ele, nessas visitações todos os cristãos eram obrigados a denunciar todos os casos de práticas judaicas. Acontece que a última daquelas visitações terminou poucos dias antes da visita do inquisidor Jerónimo de Sousa. Como explicar que ele e os outros nunca, em nenhuma das visitações do “ordinário” fossem denunciados por ninguém e, de repente, aparecerem tantas denúncias? Das duas, uma: ou sempre andaram a mentir e a pecar à face de Deus e da Igreja, ou agora mentiram e as denúncias foram feitas por ódio e vingança e não por zelo e fervor cristão. (5)
De resto, a sua defesa constitui um verdadeiro libelo acusatório de algumas famílias da nobreza e da governança da terra e um vivo reportório das lutas políticas e dissensões sociais entre as elites cristã-nova e cristã-velha de Torre de Moncorvo e até dos vizinhos concelhos de Vila Flor e Freixo de Espada à Cinta, na medida em que as diversas famílias e comunidades se interligavam.
Acresce que, logo depois das primeiras prisões, foi elaborado um documento enviado ao Inquisidor-geral, como defesa coletiva das pessoas que foram presas em Torre de Moncorvo, na sequência da visitação do inquisidor Jerónimo de Sousa. Tudo indica que o autor principal deste documento fosse o Dr. Francisco Rodrigues da Silva. (6)
E aqui, encontraremos talvez a explicação para o estranho facto de todos os outros presos terem sido libertados, com penas mais ou menos leves e apenas o Dr. Francisco Rodrigues da Silva fosse queimado, no auto da fé de 25 de novembro de 1584. Ousou enfrentar a máquina inquisitorial!
O inquisidor geral, D. Jorge de Almeida, ter-se-á sentido incomodado com aquela exposição. E por isso ordenou aos inquisidores de Coimbra especial empenho no despacho dos processos dos presos de Torre de Moncorvo. (7)
Notas:
1-Em Vila Flor, casada com Bernardo Lopes, morava também uma irmã do Dr. Garcia, chamada Maria Álvares, a qual foi presa pela inquisição em 1557 – ANTT, inq. Lisboa, pº 2893.
2-IDEM, inq. Coimbra, pº 8450, de Francisco Rodrigues da Silva.
3-IDEM, Livro 662 da inquisição de Coimbra, pg. 60v – 100v; ANDRADE e GUIMARÃES – Subsídios para a História da Inquisição em Torre de Moncorvo, ed. Câmara Municipal de Torre de Moncorvo, 2007.
4-Não encontrámos nos ficheiros do ANTT o processo do Dr. Luís Álvares da Silva.
5-Provará que de 20 anos a esta parte, sempre o arcebispo de Braga visitou a vila da Tore de Moncorvo cada 3 anos, em pessoa; e os seus vigários visitaram todos os anos e o ano presente de 83, a visitou o vigário-geral da dita vila e acabou a visitação poucos dias antes que a ela fosse o senhor inquisidor (…) ele réu foi culpado em visitação, por onde se vê claramente que se algumas pessoas o culparam, não foi com zelo e cristandade, senão por ódio e inimizade sua e de seu sogro, porque o houveram de dizer nas ditas visitações ou a seus confessores, mas não o disseram, na verdade por não haver culpas; e o fizeram na visitação do santo ofício porque sabiam que não se saberia quem eram.
6-Este documento (Petição dos cristãos-novos de Torre de Moncorvo) encontra-se transcrito no processo nº 89 da inquisição de Coimbra, folhas 84-87, de Francisca da Silva. MEA, Elvira Cunha de Azevedo – O procedimento inquisitorial garante da depuração das visitas pastorais de Braga (Século XVI), in: Actas do Congresso Internacional do IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga, Volume II/2, pg. 67-95.
7-ARCHIVO HISTORICO PORTUGUEZ, Vol. IX, p.342: – Senhores. Os treze presos que trouxe Inofre de figueiredo se despacharão em conselho com a diligencia que puder ser, por que parece bem que o auto se não defira mays tempo e se escuse a despesa que se faz com os presos, e ey por bem que os reconciliados da torre de Moncorvo e doutras partes, que tem perdido suas fazendas, se provisão do fisco per tempo de hum mês, ou dous, que me escreveys poderão andar nessa çidade, e quanto aos filhos dos reconciliados folgarey de saber quantos são, e sua idade e o modo em que vos parece se pode prover sobre sua criação e doutrina… Lisboa, 9 de Agosto de 84. O Arcebispo Inquisidor geral.