De regresso ao pântano

PUB.

Ter, 08/05/2018 - 10:11


Começara o século quando um António, quase tão santo quanto o proclamado padroeiro da capital, também com dotes oratórios afamados, mas igualmente destinado a sermonar aos peixes, comunicou ao país, entre pesaroso e desiludido, que já não suportava o fedor do pântano em que se tornara a política nacional e, por isso, se demitia das funções de primeiro-ministro.
António Guterres dedicou-se depois a virtuosas tarefas, lidou com a miséria, a dor e a morte e continua empenhado em que este mundo seja respirável, mesmo quando sobre a sua cabeça voam mísseis em crescendo e o cantar das metralhadoras lhe abafa os apelos à serenidade.
Entretanto, como muitas vezes acontece na natureza, da podridão do pântano emergiu cobertura de erva fofa, pontuada por eflorescências coloridas que, ao longe, deixam ver um prado acolhedor e refrescante. Conhecem-se tragédias provocadas por tais ilusões, verdadeiras armadilhas que atraem incautos às areias movediças, para os engolir irremediavelmente.
Apesar do piedoso aviso, ninguém lhe ligou. Dos fracos e hesitantes não rezaria a história, o mundo estava para gente ousada, os tempos que vinham prometiam prosperidade. No meio de tanta fartura nada melhor do que aproveitar, que esta vida são dois dias. A esperteza videirinha tem sido, aliás, fonte de prestígio, até porque pobres e burros que os leve o diabo...diz o povo.
Mas pela enésima vez na história deste mundo, a trama urdida pela vigarice internacional para comer as papas na cabeça aos lorpas, não resistiu à dureza da economia real. Voltaram dias de retracção, falências em catadupa, desemprego alarmante, cintos a apertar até colar a barriga às costas. Cresceu o rumor incómodo que acompanha a desgraça, instalou-se a raiva que volteia sobre as ruínas.
Mesmo assim a cupidez impôs a sua lei e alimentou a vertigem de que não falta sorte a quem não questiona a própria consciência. Por isso o pântano alastrou, atolando o sistema político nas lamas da baixeza, da indignidade, da cobiça tonta, da falsidade e da presunção de olímpica impunidade. Todos os dias surgem notícias do aproveitamento descarado, da falta de vergonha, mesmo da arrogância despudorada de protagonistas da política caseira.
No entanto, o pântano também tem os seus limites, o seu ‘equilíbrio ecológico’. A densidade de batráquios pode tornar-se excessiva e nada melhor que sacrificar alguns para garantir a tranquilidade que afaste as atenções de quem tem vontade de o secar, porque, certamente, neste couto pestilento os valores não encontram abrigo.
Poderá acontecer, para surpresa geral, que a turba de rãs produza tal chiqueiro de acusações mútuas, revelador da verdadeira dimensão do charco mortífero de que o bom António tentou arredar-nos daquela forma suave e misericordiosa que continua a caracterizar os que contemplam a utopia da santidade.
Talvez valesse a pena que tivesse sido mais claro, corajoso e desassombrado, permitindo poupar o país ao suplício da vergonha que o atira para a condição de verdadeira choldra, que tanto perturbava o velho Eça, carregado de razão mais de um século depois de ter zarpado para outras paragens.

Teófilo Vaz