Em defesa da alma

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Quando em 2015 me propus colaborar regularmente com este jornal, desconhe-
cia por completo quanto tempo duraria a parceria, nem tão pouco qual o rumo das temáticas a abordar. Tive algum receio, admito, mas segui em frente. Recordo, no entanto, que o único propósito que assumi para comigo foi o de nunca escrever sobre assuntos relacionados com a igreja católica. Parece que, mais uma vez, o “nunca digas nunca”, levou a melhor e vejo-me na iminência de quebrar a promessa.
Em Semana Santa, um jornal italiano publicou uma suposta entrevista com o Papa Francisco, onde terá dito que o Inferno não existe e a alma pecadora apenas se encontra afastada da presença de Deus. Isto terá bastado para que a comunicação social fizesse eco das supostas palavras e o Vaticano viesse desmentir o La Republica e o jornalista Eugenio Scalfari dado este não usar apontamentos nem gravador nas entrevistas que realiza. Mas, mais uma vez, o foco situa-se no acessório deixando o que é fundamental para um mundo onde alguns dizem que a espiritualidade aumentou mas diminuiu a religiosidade, e eu digo que a cultura religiosa, se é que existiu alguma vez, está extinta e, porque a tradição deixou de fazer sentido, qualquer afirmação que soe a estranho se é replicada, também, com a mesma rapidez, é contestada.
Ora se a metáfora do fogo infernal se impôs ao longo de séculos e povoou o imaginário que traduziu nas mais belas expressões artísticas uma determinada visão de uma realidade transcendente, também há quem entenda que a imagem bíblica é para ser levada à letra. Esta realidade designada por sheol em hebraico, hades em grego ou infernus em latim designa nas três culturas uma mesma realidade de afastamento da Luz e de sofrimento porque a alma privada do contato com Deus não consegue, portanto, realizar-se. Por isso, sem grandes teologias ou filosofias, e com toda a humildade científica que me assiste, mesmo que o Papa Francisco tivesse feito tal afirmação não me parece que tenho colidido com os ensinamentos da doutrina católica, podendo, simplesmente, ter beliscado a memória cultural de alguns que agarrados ao passado o tomam como presente.
Mais preocupante é, quanto a mim, o facto de, no seio da igreja haver tanta contestação a tomadas de posição a Bergoglio enquanto arcebispo de Buenos Aires, e agora como Papa, chegando a haver páginas da internet, identificadas como de inspiração católica, que o apelidam de antipapa com base nas suas ações ecuménicas e nas palavras proferidas, nomeadamente, quando se refere a judeus e muçulmanos, na continuação do que preconizava o concílio Vaticano II, nos idos de 1962. Ora se nem o próprio Cristo agradou a todos e foi traído por um entre apenas um punhado de crentes, não admira que, sendo agora milhões, o seu representante na terra seja alvo de censura por parte dos que dizem crer.
Também por cá os exemplos se vão repetindo, sendo que, não atingindo a profundidade teológica dos iluminados vaticanistas, a censura fica-se mais pela perspetiva ideológica, construindo epítetos que vão desde “bispo vermelho” em alusão a D. Manuel Martins ou “frade cripto-comunista” por referência a Frei Bento Domingues, quando e porque, segundo ele, mais do que a divisão entre católicos e ateus, é necessário pensar no que se encontra entre opressores e oprimidos.   
Em abono da verdade, as maiores preocupações da igreja católica não serão os ateus, os agnósticos ou as outras religiões e seitas que vão ocupando o espaço que esta deixou, ao que parece envolta em querelas internas. Lamenta-se que quem as alimenta se tenha esquecido do que Marcos adverte: “se um reino se dividir não pode subsistir” e mais significativo do que a forma é o conteúdo. E porque tão esquecidos andamos do que é a verdadeira igreja, permita-se recordar as sábias palavras de D. António José Rafael que, com a frontalidade tão caraterística, repetidamente advertia: “a igreja é vida, e a vida ou se renova ou morre…”.
Da minha parte, prefiro sentar-me à mesa com todos, orar com a minha igreja e sentir a vida com todos os irmãos, crentes e não crentes, brancos, negros ou amarelos porque, enquanto não nos provarem para onde se vai verdadeiramente, o melhor será acreditar no Deus de nossos pais… pelo menos dá esperança.

 

Raúl Gomes