Bartolomeu Garcia nasceu em Lamego por 1608, filho de Diogo Garcia e Maria Gomes, que se dedicavam à criação de sirgo. Trata-se de uma família profundamente marcada pela perseguição inquisitorial: irmãos, pais, tios e primos, quantidade deles, foram ocupando celas da inquisição. Por se tratar de casos por nós tratados anteriormente, evocamos a prima paterna, Maria Lopes, casada em Sambade, com António Vaz de Leão e os filhos Rodrigo Vaz de Leão e Miguel Lopes.(1)
Por 1621 Bartolomeu ausentar-se-ia para Castela, com seu tio Pero Vaz, em cuja casa assistia, iniciando-se na vida de mercador. O mesmo caminho seguiram os irmãos, em 1626, quando a inquisição prendeu a sua mãe, no decurso de mais uma operação lançada na martirizada cidade de Lamego. E seria por essa altura que, em Chaves, arrumou o seu casamento com Filipa Alvarenga, como ele próprio contou mais tarde.
- Há 25 anos em Chaves, em casa de Tomás Pinto, seu sogro agora residente na Galiza, e com Beatriz Alvarenga sua mulher, já defunta e com a mulher dele confessante, Filipa Alvarenga, estando todos juntos perguntou-lhe sua sogra porque ia fugido para a Galiza e ele respondeu que ia fugido porque em Lamego prendiam as pessoas que criam na lei de Moisés.
Mas não se pense que ficou parado em Monforte. Pelo contrário, Bartolomeu percorreu então muitas terras de Espanha e muitas vezes voltaria a Portugal, em viagens de negócios. Foram assim, 17 anos de mercador ambulante.
Regressado a Portugal, assentou morada em Vilarelhos, uma terra do Vale da Vilariça, no concelho de Alfândega da Fé. Era já um mercador de grosso trato e cabedais avultados, pelo que iniciou uma nova etapa na sua vida – a de rendeiro.
De entre as rendas que trazia arrematadas, referência especial para as do arcebispo de Braga em terras de Provesende, por 350 mil réis / ano.
Também na mitra de Braga arrematara a renda da abadia de Sambade, devendo pagar 425 mil réis no primeiro ano, baixando depois para 350 000. Mas o dinheiro não era todo entregue na mitra. Assim, descontavam-se 60 000 réis que entregava ao padre encomendado da igreja; 7 ou 8 mil réis destinavam-se a pagar os ofícios da semana santa; 6 ou 7 mil iam para o padre franciscano de Mogadouro que a Sambade ia pregar os sermões da mesma semana; 3 500 gastavam-se com os padres que participavam na festa anual dedicada ao orago da mesma igreja e eram entregues ao mordomo e 8 mil réis eram para o padre coadjutor da mesma igreja. A este, era costume dar ainda o rendeiro em cada ano 22 alqueires de trigo, para sustento.
Outras rendas mais trazia Bartolomeu arrematadas como eram as terças arcebispais de Eucízia e Adeganha ou as sanjoaneiras de Benlhevai e Rio das Cabras. Mas também a do real d´água no termo de Alfandega da Fé que ele tomara, por 20 000 réis, da mão de Pero Marcos e Manuel da Costa,(2) que traziam arrematada “a renda do real d´água de toda a comarca de Torre de Moncorvo”.
A partir dessa altura, a morada de Bartolomeu Garcia dividia-se entre Vilarelhos, onde estava a mulher e tinha casas e terras e Provesende, onde armazenava o produto das rendas. E se em Vilarelhos tinha um feitor (Francisco Martins), para dirigir as atividades agrícolas e comerciais, a quem pagava 4 mil réis cada ano, em Provesende tinha uma criada, que trouxera da Vilariça contratada por outros 4 mil réis. Curioso que em Provesende tinha 4 porcos a criar e em Vilarelhos nada consta. E se a criada é que tratava e cuidava dos porcos, não sabemos quem cuidava de dezena e meia de cabeças de gado ovino e caprino que também possuía. E para as deslocações nenhum animal era mais precioso e frugal que a sua mula, que valeria acima de 25 mil réis. Tinha ainda uma burra de criação.
Porém, acima de tudo, era mercador, mercador de vinhos, sobretudo. Só no mês de dezembro de 1647, o último antes de ser preso, ele vendeu para o Porto umas 30 pipas de vinho, como ele próprio contou:
- Disse que, no Porto, no mês de dezembro passado, vendeu ele declarante 30 pipas de vinhos, os quais eram velhos e novos, que tinha da renda de Provesende, a várias pessoas taberneiras da dita cidade, de quem não sabe os nomes, em preço a pipa a 7, outras a 6 mil réis e outras 4 cada uma como podia, conforme o vinho era, em que montaram 140 mil réis…
Não sabemos quanto pagaria aos barqueiros pelo transporte, rio abaixo, e de “direitos que se pagam na casinha”, que aquelas pipas ficariam em 20 mil réis. O armazenamento do vinho seria o maior problema de Bartolomeu que, na casa que alugara, tinha apenas 5 tonéis, correspondendo a umas 12 ou 13 pipas, cada uma valendo 3 500 réis. E os cascos não eram dele, mas da mitra de Braga. De resto, os toneis, as pipas e as adegas eram emprestados. A título de exemplo, veja-se um pequeno excerto do seu inventário:
- Tem mais 4 toneis de vinho em Provesende, que serão 11 pipas e meia de vinho, pouco mais ou menos, na adega das filhas de Esperança Taveira e 3 cascos são das ditas moças e outro casco é do cego de S. Cristóvão, que lhe deram as ditas moças para recolher o vinho, de graça.
Ao tempo da sua prisão tinha uns 23 tonéis em adegas de 10 pessoas diferentes na povoação de Provesende. Calculou ele que seriam umas 60 pipas, que, somadas às 12 ou 13 que tinha em casa, contabilizamos em mais de 1820 almudes!
Mas ele não era apenas cobrador de décimas do vinho, mas também de outros produtos agrícolas da região. Assim, armazenados na “tulha da mitra arcebispal”, tinha uns 220 alqueires de trigo e 160 de centeio; 25 ou 3 alqueires de feijões; 5 ou 6 pedras de linho; 30 alqueires de azeitona que dariam 10 almudes de azeite (“e ficara outra muita por recolher”); 10 ou 12 arráteis de lã “tingida de azul e branca e preta”; umas 7 arrobas de figos secos; 14 alqueires de castanhas e umas 25 arrobas de sumagre. Nota interessante: também vendia calabres (cordas grossas e compridas usadas especialmente nos carros de bois para prender carradas de lenha, cereal …), calabres que ele mandava vir da feitoria de Torre de Moncorvo.
Nesta contabilidade não entra o azeite, o vinho e outros produtos que colhia nas suas propriedades de Vilarelhos, nem o centeio e trigo das rendas de Sambade, Adeganha e outras que atrás referimos.
E se em Provesende tinha apenas bens provenientes da cobrança das rendas, em Vilarelhos, Bartolomeu era dono dos seguintes bens de raiz: uma casa que valia 30 mil réis; um chão ao Pontão e outro nomeado de Santa Comba; um olival no sítio da Marzoenga e outro junto ao povo e uma vinha, em sítio não referido. Podemos, pois, apresentá-lo também como agricultor.
Desde o ano de 1626 que na inquisição de Coimbra Bartolomeu Garcia tinha processo aberto com registo de várias denúncias, nomeadamente de sua mãe, irmãos e outros familiares, presos ou apresentados no “tempo da graça” decretado por Filipe II, tempo em que, como se viu, ele se abalara para Espanha. Porém, ao início do mês de novembro de 1640, foi recebida em Coimbra uma carta da inquisição de Santiago da Galiza pedindo a prisão de vários cristãos-novos portugueses entre eles o nosso biografado e sua mulher. Vejamos um excerto da carta:
- En este santo ofício están botados a prisión (…) Bartolomeu Garcia, mercador, veciño de la dicha villa de Monforte de Lemos, alto de cuerpo, flaco, de rosto blanco, de poca barba, lampino, de edad de treinta e seis años e Filipa Alvarenga, su mujer, de hasta veinte y sete años…(3)
Foi efetivamente preso ao findar de 1647, pelo futuro comissário da inquisição António de Azevedo,(4) abade da igreja de Sambade, cujas rendas ele trazia arrematadas e ao qual pagava 60 000 réis de ordenado por ano, como atrás se viu. Bartolomeu foi entregue em Coimbra em 4 de janeiro seguinte e Filipa Alvarenga, sua mulher, seguiria o mesmo caminho, meio ano depois. Ambos saíram penitenciados no auto da fé de 10.7.1650.
Notas
1-ANDRADE e GUIMARÃES, Nós Trasmontanos…, Maria Henriques (n. Vila Flor, 1650), in: Jornal Nordeste nº 1113, de 13.3.218.
2 - ANTT, inq. Coimbra, pº 9486, de Manuel da Costa, o qual era casado com Isabel da Costa, igualmente penitenciada. ANDRADE e GUIMARÃES, Nós Trasmontanos… jornal Nordeste nº 1057, de 14.2.2017
3 - ANTT, inq. Coimbra. Pº 0619, de Bartolomeu Garcia; pº 2907, de Filipa Alvarenga.
4 - António de Azevedo era natural de Paredes, S. João da Pesqueira, filho de Pedro Álvares da Veiga, familiar do s. ofício. Ao habilitar-se, em 1649, para comissário da inquisição escrevia:
- Diz o padre encomendado na igreja de S. Maria de S. Bade (…) que no lugar onde está por Abade encomendado há 18 anos, e nas mais vilas e lugares circunvizinhos tem feito muitas prisões e diligências do santo ofício, por muitos dos senhores inquisidores da inquisição de Coimbra, porquanto nas 6 ou 7 léguas circunvizinhas não há comissário do santo ofício (…) sendo muito necessário por haver por estas partes muita gente da nação… - Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, António, mç. 8, doc. 334.