“Roubar o coração” ou “roubar a alma” eram expressões típicas do meu povo que por gerações as dizia e todos sabiam o significado independentemente do contexto. Mais recente é a mania das “palavras sazonais”, aquelas que aparecem fulgurantes à boleia da comunicação social, fazem uma estação e depois desaparecem. Ainda há poucos meses dava gosto ouvir os nossos políticos aderir à moda e abusar da palavra “narrativa” qual adorno do estilo discursivo, para, de súbito, dar lugar ao “foco” e às múltiplas derivações: “focagem”; “focar”...
A aproximação do final do ano pode ser um factor condicionante até porque todas as atenções estão concentradas, digo, focadas, no orçamento do próximo ano. Este documento mais do que orientador, define as linhas de atuação do governo para os próximos trezentos e sessenta e cinco dias e condicionará a vida de cada um, em maior ou menor grau, conforme o olho dos eleitos recaiu sobre um ou outro prisma da vida profissional, económica e social de cada grupo, tendo como referência a necessidade de gerar receitas para fazer face às despesas. Por mais que se diga, e embora as promessas vão sempre noutro sentido, é sobre a classe média que todos os anos recai a parte mais onerosa da questão pois aí, seja de forma direta ou indireta, é que todos os governos têm vindo a coletar a maior fasquia: a taxa das renováveis não avançou, o Bloco ergueu a voz, mas medindo as consequências votou a favor. Os argumentos eram válidos, e mais uma vez A. Costa, hábil político, conseguiu fazer valer as suas ideias e aprovar um orçamento que não gerando consensos corre o risco de deixar a todos quantos o aprovaram um certo amargo de boca.
Sendo um orçamento de consensos, cada uma das partes teve de abdicar de princípios fundamentais da sua matriz que possibilitaram a elaboração de um documento sobre o qual, findo o período de vigência, se poderá dizer que foi um mal menor embora, e à partida, se fique com a sensação de que, quem mais teve de abdicar, foi efetivamente o Partido Socialista. Só assim se entende que os grandes investimentos e obras públicas que caraterizaram outros orçamentos deste partido, sejam agora uma ténue amostra e desiluda quem aguardava melhores infraestruturas rodoviárias onde ainda não existem, ou mais investimento na área da saúde numa perspetiva descentralizadora. A educação, tão propalada em governos anteriores, esmorece e nem o descongelamento das carreiras foi capaz de cativar a classe que se verga ao peso das burocracias e do agora inventado “Plano de Ação Estratégico” dos agrupamentos.
Se os chavões continuam a estar presentes, do tipo: “dinamizar a competitividade, o crescimento económico e a coesão social” falta-lhe o brilho de outrora e, sobretudo, a correspondente concretização que é do que o povo necessita. As novidades de última hora, como o Público, intitula, ficam-se pela satisfação das pretensões menores dos parceiros: o fim do corte de dez por cento do subsídio de desemprego, sendo que se no dia dezassete de novembro, sexta-feira, o Bloco dava a medida como certa, já antes o PCP tinha garantido ter acordo com o governo sobre esta medida. O congelamento do valor máximo da propina de licenciatura é outra medida inscrita à última hora sendo uma proposta já repetida nos dois últimos orçamentos. A medida que desperta mais curiosidade é, sem dúvida, a que irá permitir à CP a aquisição e reparação de material circulante que a nós transmontanos tanto nos diz e, no meu caso particular, faz-me pensar no tempo de Garrett e nas suas viagens vá-se lá saber porquê.
O Orçamento 2018 não sendo uma manta de retalhos, não será também uma colcha que poderá dar algum aconchego é, sobretudo, o possível resultante de convergências ideológicas que, díspares, teimam em manter-se unidas, sob pena de se virem a aniquilar sem brilho nem fulgor porque o coração mais forte já não bate porque, povo, de bom grado dispensaríamos os cêntimos a favor de um Estado que nos garantisse melhor saúde, cultura e educação sem para isso termos de pagar mais.
Raúl Gomes