Compulsando a literatura portuguesa, vemo-la pejada de textos onde a mulher ocupa lugar cimeiro. De produção maioritariamente masculina que no amor busca o refrigério e a sua completude, é natural que a mulher seja uma procura constante. Cantigas de Amigo e de Amor hiperbolizam a donzela. Se umas a retratam como um ser que sofre e é saudoso pelo amigo que tarda em chegar porque está no “fossado” com el-rei, noutras situações ela, idolatrada e altiva, é a razão de ser de um amador a quem a “coita de amor” não o favoreceu e pede a Deus, em alternativa, que lhe dê a morte.
E graças ao amor e à mulher, foi a língua portuguesa crescendo, até D. Dinis a emancipar, dando-lhe “carta de alforria”. Estávamos no século XIII e a Universidade chegara a Portugal denominada Estudo Geral, nessa época. O país consolidara as suas fronteiras e Alcanizes servia de palco à confirmação do território.
Muito fizeram os nossos antepassados. Homens intrépidos cujos nomes povoam os nossos compêndios aparecem na ribalta, onde se acoitam mulheres que no remanso dos lares educam filhos que continuam a construir uma história, maioritariamente masculina.
Em tempos de descobrimentos, escrita de costumes, a caminho da centralização do poder, onde os homens, inevitavelmente, têm uma parte de leão, não cabe à mulher um quinhão no alargamento do território. O Auto da Índia ou a Farsa de Inês Pereira, entre outras formas teatrais, são paradigma da fraca representação social da mulher no mundo dos homens.
Camões, no episódio da despedida de Belém, lembra as lágrimas das mulheres, o papel na construção do lar e na felicidade caseira.
Dom Francisco Manuel de Melo, conquistada a soberania, no século XVII, instado a dar conselhos a um pretendente ao casamento, escreve em Carta de Guia de Casados, palavras nada abonatórias em favor da mulher, ele que, provavelmente, terá sido vítima de amores femininos, em favor de D. João IV, seu rival e subordinante em tempos de guerra em busca da paz com Castela. Um livro de carácter misógino, onde se podem ler “pérolas” deste jaez seria bom ocupar a mulher no governo doméstico, e é bom, e é necessário, não só para que ela viva ocupada, se não para que o marido tenha menos trabalho. Ressalve-se, porém, esta afirmação, as mulheres são como as pedras preciosas, cujo valor cresce ou mingua, segundo a estimação que delas fazemos. Em forma de aviso para os incautos, Os que casam com mulheres maiores no ser, no saber e no ter estão a grandíssimo perigo.
Em governação do Marquês de Pombal, com a Real Mesa Censória a espreitar, Luís António Verney em terras transalpinas, escreve o Verdadeiro Método de Estudar, obra epistolográfica, que servirá de catecismo numa época de luzes, com Portugal à procura do progresso e de novas mentalidades, com os jesuítas a correrem apressados para o exílio em 1759.
Frade barbadinho, ligado ao ascetismo clerical, não deixa de contemplar a sua atenção sobre a educação das mulheres a que dedica grande parte do seu estudo na carta décima-sexta, talvez inspirado no Tratado de Educação das Raparigas, de Fénelon (1651-1715). Afirma Verney:
Quanto à necessidade, eu acho-a grande que as mulheres estudem. Elas, principalmente as mães de família, são as nossas mestras nos primeiros anos da nossa vida: elas nos ensinam a língua; elas nos dão as primeiras ideias das coisas. E que coisa boa nos hão-de ensinar, se elas não sabem o que dizem? (…) Além disso, elas governam a casa, e a direcção do económico fica na esfera da sua jurisdição. E que coisa boa pode fazer uma mulher que não tem alguma ideia da economia.
Não tendo a pretensão de esgotar o tema, vale a pena citar Alexandre Herculano que em Eurico, o Presbítero, publicado pela primeira vez em 1843 na Revista Universal Lisbonense e no Panorama e em livro, em 1844, escrevia no preâmbulo:
Dai às paixões todo o ardor que puderdes, aos prazeres mil vezes mais intensidade, aos sentidos a máxima energia e convertei o mundo em paraíso, mas tirai dele a mulher, e o mundo será um erro melancólico, os deleites serão apenas o prelúdio do tédio.
Eça de Queirós, num outro registo e num outro ciclo, anos mais tarde, aberta a porta do realismo, nos livros que são do domínio público, Os Maias, O Primo Basílio, O Crime do Padre Amaro, A Relíquia, A Tragédia da Rua das Flores e Contos, é possível verificar que a mulher é um ser ostracizado, pecaminoso, adúltero, onde as virtudes não abundam.
Em colaboração com Ramalho Ortigão escreve As Farpas, crítica impiedosa à sociedade da época. Motivos profissionais obrigam-no a abandonar o projecto, dando origem a Uma Campanha Alegre, onde afirma que peleja contra a tolice, reduzindo a mulher a “caçadora” de marido, é possível ler o que escreve em Junho de 1871:
A caça ao marido é uma instituição. Levam-se as meninas ao teatro, aos bailes, aos passeios, para as mostrar, para se lançar à busca. Faz-se com a maior simplicidade esse acto simplesmente monstruoso. Para se imporem à atenção, as meninas têm as toilettes ruidosas, os penteados fantásticos, as árias ao piano. A sua mira é o casamento rico. Gostam do luxo, da boa mesa, das salas estofadas, um marido rico realizaria esses ideais. Mas a maior parte das vezes, o sonho cai no lajedo.
Insistindo na desvalorização da mulher, servindo-se da mulher lisboeta, como paradigma, lembra Eça de Queirós, citando Michelet:
A valia de uma geração depende da educação que recebeu das mães. O homem é profundamente filho da mulher.
Acresecentando:
Diz-me a mãe que tiveste, dir-te-ei o destino que terás.
Neste currente calmo que a temperatura nos proporciona, uma saída do habitat é sempre motivo para uma apreciação que ultrapassa as fronteiras do quotidiano e nos transporta para lá do olhar.
Elvas e a sua monumentalidade arquitectónica, praticamente ímpar no país, colocando-a como Património Mundial da Unesco em 2012, leva-nos a pensar nos seus feitos, nas suas gentes e em tutti quanti. Se o Hissope é marca de água em igreja que já foi Sé, Adelaide Cabete, ilustre elvense, é nome a reter, conforme afirma Maria José Rijo, em artigo publicado no jornal Linhas de Elvas em 20 de Outubro de 1995. De Elvas muito mais há a dizer, para além das vinte igrejas e sete conventos, conforme prospecto divulgado para turista ler e ver.
Adelaide Cabete, também, já viera a Bragança pela mão do Grupo de Teatro dos Estudantes da Escola Secundária Abade de Baçal, em Abril de 2006, orientado por Paula Romão, tendo Lídia Jorge, a autora de A Maçon, assistido à representação.
E a Elvas regressamos. Adelaide Cabete aí nasceu em 1867. Chamava-se Adelaide de Jesus. Compunha uma prole de cinco filhos, dos quais não sobrevive Jerónimo, o primogénito, pai de Arnaldo Brazão (1890-1968), que será advogado republicano, acompanhante da tia em várias lutas em que esteve envolvida, incluindo a sua partida para Angola em 1929, e onde permanece até 1934. Lídia Jorge ficcionará a viagem, publicando A Maçon, em 1997, editada pela Sociedade Portuguesa de Autores e Publicações Dom Quixote.
Isabel Lousada, de quem extraímos muita da informação contida neste texto, retrata-a como alta, morena, desembaraçada, com lindos olhos pretos e uma voz fresca..
Com a morte do pai, Adelaide, Adelaidinha, como lhe chamavam, é obrigada a trabalhar, como forma de ajudar a mãe, viúva com quatro filhos. Empregada como criada em casas abastadas, em montes alentejanos, fará a quarta classe com 18 anos, quando servia em casa de uma família de Elvas.
Em 10 de Fevereiro de 1886, casa com Manuel Ramos Fernandes Cabete, sargento num quartel em Elvas, havendo uma diferença de idade de dezoito anos. Adelaide aguarda a passagem do seu décimo nono aniversário, a 25 de Janeiro, para celebrar o casamento. Sendo menor, necessitou da autorização da mãe, Balbina Brazão, que não sabia assinar. À data do casamento assina pela última vez com o nome de solteira, adoptando posteriormente o apelido do marido, Cabete. Foi seu padrinho de casamento, Francisco Inácio Xavier da Silva, alentejano, por quem durante toda a vida mostrará sentida gratidão.
Com a colaboração do marido que se dispôs a vender as poucas terras que possuía, para elevar o nível cultural de sua mulher, matricula-se em Outubro de 1889, no Liceu Nacional de Lisboa, tendo aí o apoio continuado de Manuel Cabete. No ano lectivo de 1894/95, Adelaide conclui o curso dos Liceus, tendo o apoio do amarido que, ainda, colaborava nas tarefas domésticas.
Residindo em Lisboa e sempre incentivada pelo marido, matriculou-se em 1896 na Escola Médico-Cirúrgica, instituição onde conclui o curso em 1900, com tese defendida a 26 de Julho, intitulada Protecção às Mulheres grávidas pobres como meio de promover o desenvolvimento físico das novas gerações, editado no mesmo ano.
De notar, que em Portugal, desde 1870, graças ao empenho de Magalhães Lima, estavam abertas as portas da Faculdade de Medicina às mulheres. A saúde feminina atribuída às mulheres. O pudor volatilizou-se num Portugal a abrir-se para a Ciência.
Segundo Isabel Lousada, o padrinho, Francisco Inácio Xavier da Silva, ter-lhe-á deixado uma herança, sob condição de ser mantido o anonimato, para custear os trabalhos conducentes à construção de uma maternidade de raiz em Lisboa, o que efectivamente veio a acontecer, já depois do falecimento do médico obstreta, Alfredo da Costa (1859-1910), que fora seu professor.
Não esquecendo as suas origens e dando conta das dificuldades por que passavam as mulheres portuguesas, praticando, muitas vezes, o infanticídio, face ao abandono das mães solteiras a braços com gravidez não desejada ou incomportável. Adelaide Cabete faz sessões públicas de esclarecimento sobre hábitos alimentares, pedagogia e puericultura. A sua competência profissional e científica é demostrada desde muito cedo, sendo respeitada e credibilizada nas posições que toma enquanto médica, feminista e propagandista da República.
Dotada de um espírito alocêntrico, tendo sempre em vista o outro, nomeadamente os seus familiares, colabora na formação da irmã, Maria das Dores Damas Brazão, dentista pela Escola Médico-cirúrgica de Lisboa, com quem manteve consultório em Lisboa, na Rua do Ouro, nº.266-2º-Esq. Igualmente protegeu seu sobrinho Arnaldo Brazão que atingiu o posto de capitão do exército português e concluiu o curso de Direito em 1920. Foi professor liceal e da Escola Superior Colonial. Ocupando cargos de elevada importância, tem colaboração dispersa em vários jornais, sendo director do jornal A Fronteira, de Elvas, a partir do nº. 550, de 31 de Maio de 1950.
Adelaide Cabete, autora de uma vasta bibliografia, na esteira do que tinha sido a sua tese de licenciatura, e das suas preocupações, que se compaginam com os cuidados básicos de saúde, a defesa dos direitos das mulheres grávidas, os problemas da amamentação e da nutrição, a luta contra o alcoolismo iniciada nas escolas, a higiene e a puericultura, uma das formas de combater a mortalidade infantil.
Em 1907, Adelaide Cabete é iniciada por comunicação do grão-mestre Sebastião Magalhães Lima na Instituição Maçónica Grande Oriente Lusitano Unido, fundando a Loja Humanidade, com o nome simbólico de Louise Michel. De entre outras fundadoras constará Carolina Beatriz Ângelo, a primeira mulher a votar para a Assembleia Nacional em 1911, e Maria Veleda. A sua participação como activista não mais pára, tendo assistido e colaborado em congressos no país e no estrangeiro, bem como em jornais onde o feminismo é posto em relevo.
Muitas revistas, da época, põem em destaque a figura da cidadã, médica Dra. Adelaide Cabete, que em 1910 confecciona com Carolina Beatriz Ângelo, 20 bandeiras verdes-rubras no prazo de 48 horas, conforme notícias de um jornal coevo.
Em 1912, é admitida como médica e professora da disciplina de Higiene e Puericultura, até 1929, no Instituto Feminino de Educação e Trabalho, em Odivelas. Em 1914, funda o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, sendo reeleita sucessivamente Presidente até à década de 30, onde pugna pela emancipação social da mulher, que deseja ver liberta de preconceitos.
Durante a sua permanência em Angola, prestou apoio a obras de benemerência para os indígenas, em particular, advogando a favor da Gota de Leite, das crianças e das maternidades, tendo pedido ao Governador- Geral para ser criada uma prisão condigna para mulheres e crianças, na Fortaleza de São Pedro da Barra, denunciando as condições miseráveis e degradantes a que estavam sujeitas.
Em 1934, Adelaide Cabete e o sobrinho regressam a Lisboa, numa altura em que são proibidas as sociedades secretas e os partidos políticos. De saúde fragilizada, tendo sido atingida por uma arma de fogo, disparada fortuitamente. Em Lisboa, vítima de uma queda, parte uma perna, obrigando-a a internamento.
Falece em Lisboa, na freguesia de São Sebastião da Pedreira, a 19 de Setembro de 1935, com 68 anos, tendo expressado a vontade de um enterro modesto, sendo amortalhada com a sua bata de médica.
Em 1995 recebe, a título póstumo, a medalha de Grande Oficial da Ordem da Liberdade, a 10 de Junho.
Não foi adoptado o Acordo Ortográfico em vigor