Na sequência de uma visita recente ao novo edifício do Museu Nadir Afonso, em Chaves, com projecto de arquitectura da autoria de Álvaro Siza, foi motivo de reflexão o percurso profissional de Nadir Afonso, permanentemente dividido entre a sua verdadeira vocação e paixão profissional, a Pintura, e a Arquitectura, ofício no qual se licenciou em 1948, na Escola de Belas Artes do Porto[1] e que exerceu com notável sensibilidade e especial cuidado e atenção, até se distanciar por completo na segunda metade da década de sessenta do século passado, passando a dedicar-se exclusivamente à Pintura.
Um dos aspectos mais intrigantes neste percurso, verdadeiramente original, é a justificação ou explicação que Nadir Afonso dá para distinguir claramente a prática das duas disciplinas e que o levou a abandonar definitivamente a Arquitectura. Para si, ao responder a uma determinada função, o exercício da Arquitectura fica limitado enquanto expressão criativa e artística. "A Arquitectura é regida por leis (...) de perfeição. O arquitecto deve basear-se na perfeição (que reside na) qualidade do objecto cuja função responde à nossa necessidade"[2], ao contrário das obras de arte que, segundo Nadir Afonso, resultam das leis da harmonia, livres de um utilitarismo a que a Arte não se submete.
No entanto, apesar desse conflito interior, Nadir Afonso exerceu a actividade de arquitecto durante alguns anos. E fê-lo de forma notável, quer como colaborador de alguns dos nomes incontornáveis da Arquitectura do século XX, no atelier ATBAT de Le Corbusier, em Paris e no atelier de Oscar Niemeyer em São Paulo e Rio de Janeiro, quer em nome próprio, com uma série de projectos desenvolvidos em Portugal, a partir do seu escritório em Chaves e Coimbra. De entre os projectos desenvolvidos em nome próprio, gostaríamos de aqui destacar o da Capela de Nossa Senhora de Fátima, em Alimonde, uma pequena aldeia do concelho de Bragança. Localizada no alto de uma elevação natural, designada na aldeia por "cabeço do lombo", a simplicidade do seu desenho evidencia não só a capacidade do arquitecto em dar resposta à devoção e anseios da população da aldeia e do casal que fez a encomenda mas, sobretudo, a importância do lugar, que a forma pura e os materias da capelinha enaltecem, não por mimetismo mas por contraste. Funciona, desse modo, como verdadeiro remate no cimo da colina e local privilegiado para a introspecção.
O facto de se localizar no local mais remoto e improvável que se possa imaginar, adensa a modernidade do gesto de Nadir Afonso. Porque a pequena Capela de Nossa Senhora de Fátima, na sua despojada materialidade e espacialidade, nos convoca para uma conversa íntima. Não se trata de estabelecer relações com a realidade pré-existente. Pelo contrário, a capela separa-se intencionalmente do povoado e dos terrenos lavrados. Como que evocando um tempo antigo, das ocupações castrejas, que ocupavam o alto dos montes em posição de defesa dos perigos terrenos, o silêncio do seu desenho permite a fruição da belíssima paisagem envolvente e o recolhimento necessário para as coisas da alma.
Curiosamente, o pároco local, responsável pela escolha do arquitecto para elaboração do projecto, chegou a sugerir a Nadir Afonso que se “inspirasse” nalgumas capelas e igrejas locais, de cariz marcadamente rural ou tradicionalista, para a obra que então estavam a começar. Mas Nadir Afonso sabia que, mais do que um resultado da circunstância envolvente, a Arquitectura cria ela própria circunstância e não pode fazê-lo de uma forma acrítica ou indiferente. Seria, porventura, esse o interesse de projectar um edifício como esta capelinha. O de, numa linha curva que se abre em caracol, convocar esse passado remoto da ocupação humana no território e a luta pela contemporaneidade (do orgulho de viver a nossa época) e, simultaneamente, incorporar no edifício projectado e desenhado, as contradições da sua própria circunstância enquanto arquitecto e pintor.
O que mais fascina neste projecto de Nadir Afonso é a inteligência, sensibilidade e firmeza do desenho. Partindo de uma encomenda relativamente banal, o arquitecto estabeleceu não apenas um compromisso com a inevitabilidade do programa e com os seus clientes, mas também com a modernidade que, afinal, passou por Alimonde. E depois, há os materiais e acabamentos. A forma como o chão de pedra se faz parede, branca, sem rodapé ou qualquer tipo de truques e esta, se dilui e confunde com o tecto, também branco, sem chegarmos a perceber verdadeiramente onde começa um e acaba o outro. Por fim, o controlo da luz no espaço interior. O modo como o desfasamento da parede permite que o altar seja inundado de luz. Nesse diálogo com o lugar, o edifício afirma toda a sua transcendência.
Quando comecei este texto, pensei escrever sobre o Museu Nadir Afonso, em Chaves, e o modo como o génio de Álvaro Siza nos propõe uma conversa íntima com a obra de Nadir Afonso, nas margens do Tâmega. Sobre a forma como Siza, que sonhou ser escultor antes de ser arquitecto, se aproximou de Nadir Afonso e da complexidade do seu pensamento. Mas a Capela em Alimonde, tomou conta do texto e, por mais adulterada que se apresente na actualidade, sobrepôs-se pela simplicidade e pureza da forma. Afinal, Nadir tinha recebido os “ensinamentos” de um dos mestres do Movimento Moderno, em primeira mão.
Anthony Vidler, num capítulo do livro “Warped Space”, reflecte sobre a forma como a maioria das pessoas se movimenta no espaço urbano, sem aparentar compreendê-lo ou, sequer, vê-lo. E o modo como as cidades são invisíveis para nós, que nos habituámos a percorrer os seus espaços e os seus monumentos, de forma intuitiva. Walter Benjamin explica esse fenómeno no seu ensaio “The work of Art in the Age of Mechanical Reproduction”, afirmando que a Arquitectura sempre representou um protótipo de uma obra de arte cuja recepção é feita pela colectividade num estado de distracção[3]. Poderemos dizer que o projecto desenvolvido por Nadir Afonso em Alimonde, não só se adaptou às condições do local onde se inseriu, e atingiu as leis de perfeição que regem a Arquitectura, como, ao se libertar de certo modo desse principal constrangimento funcional, sobretudo pela qualidade do desenho, se aproximou vertiginosamente das leis da harmonia que regem a Arte. Como um operador de escalas, que incorpora o procedimento artístico e provoca emoções estéticas[4]. Habituámo-nos a vê-la lá, no alto do seu cabeço e, provavelmente, teremos andado muito distraídos ao longo deste tempo para perceber isso.
Em jeito de conclusão, referir que este artigo vem também a propósito da intenção de demolição do edifício da PanReal, em Vila Real, da autoria de Nadir Afonso, motivo de petição pública “Vamos salvar o edifício da PanReal - projecto de NADIR AFONSO - em Vila Real”, e da consequente necessidade de salvaguarda do património arquitectónico como bem que é de todos e inclui o extraordinário conjunto de arquitectura moderna que se fez em Bragança e de que a capela de Alimonde é um belo exemplar.
* Este artigo foi escrito originalmente para o Wall Street International Magazine, com o qual o autor colabora regularmente e pode ser consultado em:
http://wsimag.com/pt/arquitetura-e-design/24850-a-arquitectura-e-a-arte.
É dedicado à memória de Manuel Francisco Afonso (Nunes), Gracinda Virgínia Vaz Rijo, que patrocinaram a construção da capela; e de Francisco dos Anjos Fernandes do Vale, primo do casal e pároco responsável pela escolha de Nadir Afonso para elaboração do projecto da capela.
[1] O C.O.D.A. que Nadir Afonso apresentou intitulava-se "A Arquitectura não é uma Arte".
[2] João Cepeda, Nadir Afonso Arquitecto (2013), p.88.
[3] Anthony Vidler, Warped Space - art, achitecture, and anxiety in modern culture (2000), p. 79.
[4] Paulo Varela Gomes, Tomar partido, in Jornal dos Arquitectos 138/139 (1994), p. 21.