Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Domingos (Jacob) Lopes Oliveira (1679 – 1720)

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Os ascendentes de Domingos Lopes viveram em Vila Flor, onde eram conhecidos pela alcunha de Vinagre e cuja história na inquisição ficou registada em muitos processos. Domingos, no entanto, nasceu em Mirandela, terra para onde seus pais se haviam mudado. O pai, João Lopes, o Regalado, de alcunha, apresentou-se na inquisição de Coimbra em 1665, sendo ainda solteiro. Foi chamado 20 anos depois e sentenciado em penas espirituais. A mãe, Leonor de Oliveira, foi presa pelo mesmo tribunal e saiu no auto de fé de 1713, condenada em cárcere e hábito.(1)
Da mesma família dos Vinagre de Vila Flor descendia sua mulher, Luísa da Costa, ou Luísa de Oliveira,(2) nascida já em Bragança, terra para onde transitaram os seus pais, idos de Mirandela.
O ofício de tecelão de seda aprendeu-o o nosso biografado com o mestre Manuel da Costa, em Bragança, em “curso” que durava um mínimo de 4 anos. E terá sido também o dito mestre que o catequisou na lei de Moisés, conforme sua própria confissão. E sucedendo-se vagas de prisões em Bragança na primeira década do século XVIII, nelas foram arrebanhados vários membros da família Vinagre-Costa, nomeadamente a mulher de Domingos, Luísa da Costa, a sua irmã, Maria de Oliveira e o marido desta, Baltasar da Costa,(3) irmão de Luísa.
Obviamente que a estas prisões corresponderam vagas de fugas para o estrangeiro. Em uma dessas vagas de fugitivos contou-se Domingos Lopes, juntamente com seu tio materno Manuel de Oliveira, um filho deste e do mesmo nome, e dois companheiros oficiais tecelões: Francisco de Sá e José Álvares Galinha.
Deste grupo de fugitivos apenas o tio de Domingos levaria uma porção de lenços de seda para vender, com a rota de fuga a passar pelas seguintes localidades de Espanha: Pedralva, Benavente, Burgos, Palencia e Zaragoça onde permaneceu algum tempo antes de se internar em França.
Neste país, Domingos Lopes foi ter a Bayonne e quando chegou ainda levava 120 mil réis, tendo a viagem durado 24 ou 25 dias. À espera dele o do tio e do primo estava já um outro primo, chamado Diogo, filho do mesmo tio Manuel de Oliveira e outro moço de Bragança que ele identificou apenas pelo nome de Isaac.
Que razões moviam esta gente a sair da sua terra? O medo de serem presos? O desejo de se fazer circuncidar, gesto essencial para se tornar judeu? Ou mais prosaicamente a procura de novas oportunidades de negócio?
No processo de Domingos encontramos díspares respostas. De uma vez disse que abandonou Bragança pelas vexações que lhe faziam obrigando-o a alojar soldados em sua casa. De outra vez disse que foi a França com a ideia única de se fazer circuncidar “e só para esse fim se fora deste reino”. Há nesta confissão uma clara vontade de afirmação de judaísmo.
Facto é que “para observar bem a lei de Moisés lhe era necessário que fosse circuncidado” e para isso Domingos Lopes, acompanhado de Pero Lopes, se dirigiu a La Bastide, a casa de um francês chamado Sanzit que o circuncidou “e ele ofereceu dois soldos a Deus do Céu pela saúde dos que lhe faziam mercê” e passou a professar publicamente o judaísmo indo “à congrega aonde vestia uma véstea de lembrança, com 4 fios da mesma cor nas pontas, chamada tallit, que punha nos ombros e umas correias que cingia nos braços chamadas tefilins, com as quais insígnias todos na congrega tinham obrigação de rezar”. E em afirmação da nova identidade, Domingos tomou o nome de Jacob.
Facilmente se integraria Jacob na “nação sefardita” de Bayonne, constituída por cerca de 150 “judeus”, dirigida por “3 parnas” e em cuja sinagoga havia um mestre da lei chamado Jacob de Campos. A integração seria facilitada pela existência de gente sua conhecida de Mirandela, Bragança, e Vila Flor, com destaque para a família de Francisco de Sá Carranca, assaz numerosa.
No entanto, a permanência de Domingos em Bayonne foi relativamente curta pois logo se meteu por S. Jean de Luz e Peryrorade, terra onde encontrou as famílias de Francisco Lopes Videira, mercador, originário de Chacim e a de Gabriel Rodrigues. Dirigiu-se depois a Bordéus, explicando que o fez por se tratar de uma terra maior e que oferecia melhores condições de vida. E a vida ganhava-a ele trabalhando em um tear que ali montou onde tecia lenços de seda.
Andaria por França uns 8 anos, sempre se afirmando como judeu e em todas as terras frequentando as sinagogas e congregas. Mostrou conhecimento da linha teológica de Menasseh ben Israel pois seguia os Dinim (ritual compendium) e as ideias expressas no Tratado da Ressurreição dos Mortos, do mesmo autor. Quando regressou a Bragança trazia um Tefillah (livro quotidiano de rezas)(4) e um Calendário das festividades mosaicas, no que mostra o seu modo de estar judaico.
Regressaria ele a Bragança com o objetivo de levar sua mulher para França? Ou “com o ânimo de abraçar a lei de Cristo”? Em qual das respostas havemos de acreditar? Certamente na primeira.
Facto é que, chegado a Portugal, se dirigiu a Coimbra e foi apresentar-se no tribunal da inquisição, em 3.11.1716. Pensaria certamente que, assim, ficava mais “protegido” e com maior liberdade de movimentos para governar a sua vida. As coisas não correram como ele pensava já que, entretanto, o mesmo tribunal tinha aberto uma ficha em seu nome e nela foram registadas muitas denúncias contra ele.(5) De modo que, o mesmo tribunal, em vez de o mandar para casa, ordenou, em 30.12.1717, que fosse preso e “metido na casa do inferno”, o que aconteceu em 24 de Janeiro seguinte. Duas semanas depois, foi transferido para a inquisição de Lisboa.
Começava a subida ao calvário para este homem de 37 anos. Torna-se impossível resumir aqui as mais de 1200 páginas do seu processo. Nele se mostra a torpeza dos “bufos” que meteram com ele no cárcere. Nele se contam os jejuns que lhe viram fazer na cadeia. Nele se registam as infindas e manhosas perguntas que lhe fizeram “os homens de manga e consciência larga”, expressão por ele usada quando se referia aos inquisidores. Imagine-se: foi submetido a mais de 20 “exames”!
No meio das suas contradições, foram chamados teólogos especialistas (“qualificadores”) para o aconselhar e levar ao verdadeiro caminho da religião cristã. Trabalho inglório, pois ele dava respostas desarmantes, dizendo que a lei de Deus e a lei de Cristo eram a mesma lei, que os mandamentos da igreja eram os mesmos que no monte Sinai foram escritos a fogo nas “tábuas da lei”. A diferença é que a lei de Moisés tinha muitos mais preceitos e era muito mais difícil de seguir do que a de Cristo que fora feita para aligeirar aquela. E que era obrigação de cada um seguir a sua própria consciência. Assim, ele sentia-se na obrigação de maiores sacrifícios e por isso tentava cumprir a “lei de Deus limpa e clara que Deus deu a Moisés”.
Choviam as perguntas incisivas dos inquisidores e Jacob sentia-se apertado no labirinto em que se metera. Afinal em que lei vivia? Vejam a resposta:
— Disse que a diferença que teve em largar a lei de Moisés e tornar a abraçar a de Cristo foi o fazer em França cerimónias judaicas e rezar orações da dita lei e não o fazer depois que veio de França (…) E que em Portugal e Espanha não cumpria os tais preceitos mas esperava alcançar perdão, por não ter liberdade para o fazer.
É uma resposta bem significativa da condição marrana, da vida entre cristianismo e o judaísmo. Mas os marranos não tinham lugar na igreja nem na sinagoga. Por isso mesmo eles começaram a reclamar o direito natural à liberdade de consciência. E também esta reclamação encontramos várias vezes referida no processo de Domingos Lopes, aliás, Jacob Lopes, conforme sua própria assinatura.
E num ato final de desespero, depois de várias confissões e revogações, sentindo-se pisar o campo da lã (era um sítio de Lisboa, junto ao rio Tejo, onde queimavam os relaxados), pedia que lhe dessem a liberdade.
Foi queimado no auto da fé de Lisboa de 16.6.1720. Gostaríamos de terminar com uma belíssima e extensa oração judaica que ele recitou para os inquisidores e que termina com estas palavras:

My Dio e Dio de nuestros padres
Nos encomendo sobre palabra de lei
Hace a saborear fuego
Sea voluntad delante de ti, Adonay
My Dio e Dio de nuestros padres.

NOTAS:
1 - ANTT, inq. Coimbra, pº 2880, de João Lopes, Regalado; pº 7682, de Leonor de Oliveira.
2 - IDEM, pº 8405, de Luísa da Costa ou Luísa de Oliveira.
3 - IDEM, pº 8859, de Maria de Oliveira; pº3230, de Baltasar da Costa.
4 - ANDRADE, Júlio; GUIMARÃES, Fernanda; VIEIRA, Carla – Na Rota dos Judeus – Celorico da Beira. Edição Câmara Municipal de Celorico da Beira, pp.  163 a 182.
5 - IDEM, inq. Lisboa, pº 1764, de Domingos Lopes.

Por António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães