Contos de Natal? Possivelmente, sim.

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Manuel Vaz Pires
 
Numa tarde de sol nos idos de 51, Manuel dos Santos, talvez o nosso melhor “diestro”,acabou a sua lide, no Campo Pequeno, com estocada final. Foi notícia no país. E logo de manhã, o Ministro do Interior, suponho que Trigo de Negreiros, descrevia o acontecimento a Oliveira Salazar com pormenores e apreciações do tipo: que não podia ser, que além de um acto selvático era uma afronta; que era um manifesto desrespeito pelas leis da República; que era um incitamento à insurreição, etc, etc, etc, assim interpretava o Ministro a forma como Manuel dos Santos encerrou a sua “faena”. Salazar, que gostava dos touros de morte mas fazendo disso segredo, ouviu de forma despreocupada a exposição e no fim, já agastado com o rol das acusações lançou-lhe a pergunta: “mas ao menos ele matou-o bem?”
É curioso ver que um homem tão sóbrio, tão exigente com os outros no cumprimento das normas instituídas, que gostava de dar de si próprio a imagem da lei e sua observância, tivesse tido, perante este ilícito criminal, uma atitude de quase aprovação. Este quase paradoxo é revelador da faceta humana que mesmo os ditadores, por mais empedernidos que sejam, também têm. Mas Salazar é pródigo em paradoxos. Dizem, até, que nunca quis ser Presidente da República (é verdade que nunca precisou de o ser para mandar absolutamente – que o diga Craveiro Lopes) pelo facto de ser… monárquico.
Outro apontamento que mostra o antagonismo (paradoxo) entre o homem e o estadista é a desinteligência com António Ferro. António Ferro era um homem culto (chegou a editar um número da revista Orpheu, onde escreviam Pessoa e Sá Carneiro entre outros) mas que numa certa fase pôs a cultura ao serviço da ideologia. Era o homem da propaganda do regime, do Fandango, do Vira, do Corridinho, do SNI, da FNAT, da Casa Portuguesa, da alegria no trabalho, da Aldeia mais Portuguesa, das Pousadas, do Cinema nas Aldeias (a que, sem pudor, chamavam mesmo propaganda). Era o rosto daquilo que os seus detratores chamaram o “Nacional-Porreirismo” e a sua política cultural era uma réplica do “pão e circo” de Júlio Cesar, se bem que aqui era mais circo. Ferro depressa viu que o Fado não pertencia ao quadro de valores culturais que ele próprio tinha selecionado para promoção e divulgação do regime. O Fado, uma música triste, que questiona sem esperança, que lamenta com dor, que fala sempre de um futuro negro e sem remédio, dolente, fatalista, que lamentava, que questionava, era tudo o que ele não queria ver por perto. Então vai tentar que não seja cantado em actos com tutela oficial, que não seja passado na Emissora Nacional, que no mínimo seja votado ao ostracismo quando não silenciado. Esbarrou com Salazar, que gostava muito de Fado e sobretudo de Amália. (O factor humano a atraiçoar a ideologia)
 
 
Igual contrariedade experimentou Goebbels. Goebbels, Ministro da Propaganda, ideólogo do regime, herdeiro político de Hitler e grande mentor das juventudes hitlerianas tinha, com as manifestações culturais, uma relação maniqueísta. Ou serviam o Regime ou não serviam para o Regime. E para a música postura igual, sobretudo com a música ligeira que é aquela que o povo mais consome. Assim, durante a ocupação da Sérvia, a emissora nacional Sérvia sob controlo nazi, mandava para o ar, todos os dias e à mesma hora, uma canção da época de nome “Lili Marleen”. Foi tal o sucesso que Goebbels viu na canção um elemento subversivo que minava a moral das suas tropas e mandou retirar todas as canções da cantora da programação. E com lógica pois do ponto de vista dele o que o regime precisava, e a tropa em particular, era de canções alegres, que dispusessem bem, que fossem heroicas, que falassem dos feitos dos Arianos sobre os “povos menores”, que mostrassem os “amanhãs que cantam” Ora Lili Marleen era o oposto, era uma canção triste, fatalista, que falava de um amor impossível e para agravar reportava-se a um teatro de guerra (tinha sido escrita por um combatente da 1.ª grande Guerra). Face ao desencanto dos militares, Goebbells ainda quis negociar com a cantora Lale Andersen. Deixava-a cantar desde que não cantasse Lili Marleen. Mas por fim a interdição foi levantada. Uns dizem que por pressão do povo, mas outros afiançam que foi por intervenção direta do próprio Fuhrer que gostava imenso da canção. (outra vez, o factor humano a impor-se à racionalidade).
Com ou sem interdição, todas as noites ao fundo da caserna lá aparecia um gramofone que tocava Lili Marleen naquele registo roufenho. E nas tarimbas, com a cumplicidade da noite, os jovens militares choravam em silêncio por tudo o que a guerra lhes tinha tirado e também por tudo o que a guerra lhes estava a trazer.
 
 
Francisco Gonçalves Ferreira, médico, fez toda a sua carreira profissional no Estado Novo e com o Estado Novo. Isso não o impediu de dedicar todo o seu esforço profissional ao estudo de melhor servir saúde às populações. Num regime em que o tema saúde não estava na 1.ª linha das preocupações ver alguém não só preocupado com o tema mas sobretudo com a sua aplicação às camadas populacionais mais desfavorecidas, parece quase um paradoxo. E como conheço eu este vulto da nossa História contemporânea? Não que eu tenha por hábito pesquisar biografias de pessoas que de tanta humildade se tornam perfeitos desconhecidos. Conheço-o porque me foi “apresentado” por outro homem grande, António Arnaut. Foi nas comemorações dos 25 anos do Sistema Nacional de Saúde, que Arnaut, o ideólogo do referido sistema, com a modéstia que o caracteriza, revelou que o seu ajudante de campo, o homem que colocou no terreno o SNS foi o Prof. Gonçalves Ferreira. A revelação deu-nos a conhecer um (desconhecido) o que só engrandeceu o outro. E a revelação é ainda mais virtuosa pois ficámos a saber que, paradoxalmente, um homem do Estado Novo é um dos obreiros de uma das conquistas mais emblemáticas de Abril.
 
 
Aristides de Sousa Mendes, cônsul português em Bordéus nos tempos da 2.ª guerra. Sousa Mendes era um homem bom, solidário, disponível a todo o vizinho que dele precisasse. E os judeus precisavam. Se não fugissem cairiam nas garras dos alemães. Daí ao campo de concentração era um passo e aí a morte era quase uma inevitabilidade. Esta conjuntura fez com que Sousa Mendes, desafiando os riscos da segurança, começasse a emitir passaportes em favor dos judeus abrindo-lhes, assim, a porta para um mundo não perseguidor. Hoje Sousa Mendes é um herói para os judeus, é cidadão honorário de várias cidades de Israel e é alvo de homenagens por tudo quanto é sítio que tenha um judeu por perto. Os judeus estão reconhecidos e só lhes fica bem pois ele salvou alguns milhares. Resumindo, Sousa Mendes foi indiscutivelmente um homem bom. Mas salvar aqueles milhares de judeus não teria sido um aventureirismo de consequências mal medidas? Vejamos: Portugal conseguiu uma neutralidade muito precária. No início da guerra eramos mais germanófilos, o que nos valeu alguns insultos no Parlamento Inglês, e no fim da guerra estávamos encostados ao nosso antigo aliado. Este equilíbrio instável manteve-se até ao fim da guerra fruto de uma política de avanços e recuos que Salazar muito bem geriu. Mas livrou-nos da guerra. Ora, não é neste clima de imponderabilidade, de sensibilidade à flor da pele, onde tudo tem um peso desproporcionado, que um cônsul se pode dar ao luxo de ter estados de alma. Podia ter desequilibrado os pratos da balança com consequências imprevisíveis.
 
 
Também eu tive por perto um homem que teve algumas atitudes desconcertantes face ao enquadramento político. (Desde já uma declaração de interesses: serei sempre suspeito quando o tema abordado envolver o meu pai(*). Prometo, no entanto, a objectividade possível). Meu pai nasceu nos anos convulsos da 1.ª República e entrou no mundo laboral com a constituição de 33. Faz, pois, todo o seu percurso profissional no Estado Novo e com o Estado Novo. De Salazar guardava algumas coisas boas e outras. O facto de nos ter isentado da Guerra merecia-lhe elogios encomiásticos. Apreciava a estabilidade que trouxe ao país e o arranjo das finanças públicas corrigindo os desmandos daqueles anos frenéticos da 1.ª República. (neste particular das finanças públicas não o acompanho pois a forma como Salazar o fez foi aquela que conhecemos hoje por “ir muito além da Troica”). Mas aquilo que mais o marcou, da actuação do Estadista, foi a forma como implementou o ensino obrigatório. Foi nesse campo um fiel colaborador e um intransigente defensor do paradigma de então: “onde houver um aluno tem de haver uma escola” (onde é que isso vai!?). Mas quando a ideia do ensino obrigatório foi para o terreno deparou-se, como era natural, com uma falta, significativamente grande, de professores. Surgiu então a figura do Regente Escolar que não era mais que um docente com habilitações reduzidas face ao Professor Primário. Foi com estes Regentes Escolares que foram preenchidas as lacunas do sistema educativo e o sistema pôde então funcionar. Mas quando o sistema ficou servido de Professores Primários, os Regentes passaram a supranumerários, logo descartáveis (repare-se na analogia com o que aconteceu quando da criação dos “Ciclos”, ensino obrigatório até ao 6.º ano, e depois com a extensão da obrigatoriedade até ao 9.º ano em que o sistema se valeu de tudo quanto podia ser professor para colmatar a falta de docentes. Mas quando as necessidades do sistema foram satisfeitas por professores com habilitação própria os outros também passaram a descartáveis) Foi este tratamento infra-humano, esta forma de lidar com pessoas como se peças de uma engrenagem fossem, com a agravante de serem trabalhadores de um sector socio-profissional que tem as relações humanas como pedra de toque da sua actividade, que encheu o meu pai de indignação. Envidou, pois, esforços no sentido de corrigir aquilo que lhe parecia ser uma injustiça gritante. E conseguiu. Primeiro através de um mecenato da Gulbenquian exclusivo para o Distrito de Bragança e posteriormente, pelo Ministério da Educação e já para o todo Nacional, foram criadas bolsas de estudo para os Regentes Escolares que desejassem fazer o curso do Magistério Primário. Numa altura em que “valorização da carreira” e “formação em exercício” eram expressões que nem sequer pertenciam ao léxico da Função Pública, ver uma simples chefia ensaiar a aplicação desses conceitos aos seus colaboradores, começando pelos mais desprotegidos, foi bonito.