Afinal, nada foi como tu pediras, há decénios, muito caro. Não ri, não contei nem ouvi estórias ou anedotas, não festejei nem encontrei piada alguma. Não consegui que assim fosse.
Deixei-te para trás e fui em silêncio por onde antigamente sempre o diálogo nos acompanhava, reencontrando agora alguns acordes longínquos desses tempos, ansiosos de presença e de abalada.
E dei-me a ter saudades das tuas histórias, das nossas e tuas estórias, aquelas que redizías e sempre nos faziam esquecer o mundo no rir às lágrimas. Era assim que o sentíamos, sem desforço, vindos das tuas contas e continuando ainda num escorripicho acrescentado a uma ninharia de última hora. E o mundo era isto mesmo: uma ninharia tua envolvida em riso criado para esconder os amargores da vida. Por que é que vimos sempre o mundo malparado? Cruzes?
Foderam-te bem, as Parcas. Não merecias tanta rasteira, tanto tempo de enguiço, tanto pesar. O inferno pagaste-o em vida neste olimpo de descrentes. Que a terra te seja leve, muito caro, como o não foi o teu viver.
Mas aquele que ali se dispunha não eras tu. A tua tranquilidade era bem diferente, menos ausente e mais auscultável, e para mim mais previsível. Aquele não eras tu. Foi alguém em quem depuseste o nada, o vazio, a ausência, esgotado já de tanto os arrastares.
Aos anos que andavas cansado deste mundo, deste condoer imposto, mas a apreensão de o abandonares era visível, pouco afirmada mas detetável. Deixavas amores por ca. E era por eles que tentavas não vingar, mas ir permanecendo e cismando. Demoravas-te, agradecias até a demora enquanto te não obrigavam à renúncia. Eram as tuas deusas que te mantinham de pé, sem desejos de acompanhares a tua cisma.
Recordas-te do Moquinhas? Claro. «Isto é o caralho!», avisava ele, cambaleante e herético, mas só tarde o entendemos e já nada podíamos remendar…
Relembras, lembras bem do que ríamos? Ahhh…, as ninharias vináceas, as ninharias intelectuais, versos duvidosos, afetos encobertos em futilidades repentinas, exíguas mas luminosas, minúcias insignificantes que tanto valorizavas… Era a descrição do pormenor, da exatidão minuciosa da particularidade, que te fazia feliz. Começávamos a sorrir no início da estória repetida e adivinhada, alargávamos a feição no meio do teu alinhavar e assumíamos o fascínio do final sabido já de cor. Era sempre assim: um deslembrar de rir inocente, repisado, castigado e renascido nalguma singularidade agora avigorada. E já tenho saudades do sabor desses rires e dos juízos com que despíamos as tuas estórias. E o despir, recordas, era tão estimado como o teu desenfiar da meada.
«Isto é o caralho»! E é! Viveste-o bem! Mas desculpa-me, não me apeteceu festejar segundo a tua vontade testamentada. Não me apeteceu rir, nem contar, nem ouvir as tuas estórias na boca de distintos. Apeteceu-me ficar só, a pensar contigo no que fomos e na merda deste mundo que tão cedo te arrebanhou.
Por João Manuel Neto Jacob