Desde 1545 que os seus ascendentes, ao longo de quatro gerações, foram enredados nas malhas da inquisição. O mesmo aconteceu a seus pais, Diogo Garcia e Catarina Lopes, moradores em Lamego, de onde se mudaram para Murça de Panoias. Ali nasceu André Silva, por 1665. Casou com Isabel Lopes, que faleceu sem descendência. Foi depois casar a Bragança com Brites Henriques, que lhe deu 4 filhos e 3 filhas.
Em Bragança tinha um complexo de casas que comprou, confinantes com a botica do Colégio. Nelas hospedava as personagens importantes, como o conde de Alvor que, em funções militares, ali ficava, por dias e semanas.
A sua residência habitual era na quinta de Palhares, sita nos arredores da cidade, junto à estrada de Miranda, que anualmente produzia umas 14 pipas de vinho e mil e tantos alqueires de cereal. No trato da quinta se empregava a família do caseiro e mais uma dezena de operários, lavrando-a com duas juntas de bois e nela apascentando um rebanho de 200 cabeças. Criavam meia dúzia de porcos e um “jumento de lançamento” foi avaliado em 20 mil réis.
Entre a quinta e a cidade, André e a mulher deslocavam-se em vistosa sege, puxada por um rocim que valia 70 mil réis. Imagina-se a inveja e o despeito causado em muitos vizinhos quando chegavam à praça do colégio e ali se apeavam. Não por acaso lhe chamavam o “Fidalgo”.
Para além da exploração agrícola e pecuária, montou André uma fábrica de aguardente na quinta das Comunhas, sítio de Ferreira, avaliada em 500 mil réis. E esta é uma nota interessante para a história industrial de Bragança, sendo esta a primeira unidade do género até hoje referida.
Possivelmente era o homem mais endinheirado da cidade e ninguém o batia na arrematação de contratos e monopólios na área da província de Trás-os-Montes. Vejamos alguns deles:
-O contrato do assento, ou seja: o fornecimento de palha e cevada para os cavalos, pão para os soldados e pagamento dos ordenados aos militares estacionados nas praças de Chaves, Bragança e Miranda.
-A cobrança das rendas do marquês de Távora, que incluíam os concelhos de Mirandela, Mogadouro e Alfândega da Fé, arrematadas por 10 000 cruzados/ano (4 contos de réis).
-A comenda do conde de S. Lourenço, em Rio Torto e Pensal, terras do limite de Chaves.
-A administração do almoxarifado da casa de Bragança, “em preço de 4 mil e tantos cruzados por ano”.
-A comenda de Santa Maria, de Castelo Branco, Mogadouro, arrendada por 10 mil cruzados/ano.
-As comendas de Monforte, pertencentes ao conde de Valadares, por 5 000 cruzados/ano.
Homem rico, assumiu, na perfeição,o estatuto de “fidalgo”. E tal era a confiança que nele depositava a marquesa de Távora que o encarregava de comprar os machos que puxariam o seu coche e levava uma sua criada para servir no palácio como sua “moça de açafate”.
À maneira da gente nobre, instituiu um morgadio a que vinculou a quinta de Palhares. A cabeça do morgadio era a capela de S. Miguel que mandou erigir à entrada da quinta, com a porta dando para a estrada. Nela gastou mais de 4 000 cruzados e, além de a dotar de todas as alfaias para o culto, nela estabeleceu um capelão que, aos domingos, ia celebrar a missa para a família e para a gente de fora que ali acorria. Seria a capela particular da cidade e termo mais movimentada e falada, causando ciúmes ao alcaide Lázaro Figueiredo Sarmento que, em vão, tentaria comprar quinta e capela, a crer no testemunho do biografado.
Apresentava-se como cristão exemplar, membro de todas as irmandades, sendo eleito mordomo principal das seguintes confrarias: S. Cristo, estabelecida na igreja de S. Vicente; S. Francisco Xavier, na igreja dos Jesuítas; S. Caetano, no convento de Santa Clara; do Santíssimo, das Almas e da Santa Rosa, estas na igreja de Santa Maria e a da ordem terceira na igreja do convento de S. Francisco. Nesta igreja pagou ele a construção do arco da capela mor que então se fez e para sustento dos frades mandava da sua quinta “muitas cargas de trigo e de vinho”.
Para espanto geral, em 9 de Junho de 1725, André Lopes dos Santos foi preso pela inquisição de Lisboa, acusado de judaísmo. O seu processo é volumoso, de quase mil páginas e a defesa do réu muito vigorosa. (1) A seu favor testemunhou a gente mais fidalga da terra e quantidade de padres, incluindo o reitor da matriz, comissário da inquisição.
E ele conseguiu “adivinhar” a gente reles, de baixa condição que o meteu no santo ofício em ato de vingança pelo seu desprezo, bem como o nome dos inimigos que o teriam denunciado, por uma questão de inveja e para lhe “roubar” os contratos e rendas.
Conseguiu provar que os mercadores de Bragança diziam “que o réu fora um raio que lhes caíra em suas casas”. Isto porque, na qualidade de feitor da alfândega mandava os guardas “dar varejo nas casas” em busca de mercadorias passadas clandestinamente sem pagar imposto. Aconteceu, por exemplo, com Francisco Rodrigues Gabriel e ao seu parente António Rodrigues Peinado terá o réu mandado os guardas revistar os alforges “para ver se levava algumas sedas furtadas aos direitos alfandegários” em uma jornada que se preparava para fazer ao Porto.
Igual varejo fazia nas feiras, nomeadamente na de S. João de Frieira, em Macedo do Mato e na do Azinhoso. Veja-se, a título de exemplo, este naco de prosa, retirado do processo:
-Manuel Garcia e um Fulano Estrada, moradores no Porto, são seus inimigos em razão que vindo eles à feira do Azinhos a comprar seda de rama e querendo abalar com os fardos para fora da feira, os guardas procuraram as guias e por as não terem, requereu o réu ao juiz que os julgasse por perdidos...
Exemplar foi também o caso de outros dois mercadores portuenses que na mesma feira do Azinhoso os guardas apanharam com um macho e uma mula, não trazendo as guias de compra. Remetidos ao juiz pelo feitor, conseguiram provar que os animais foram comprados a lavradores portugueses e não estavam sujeitos a imposto alfandegário. Mas tiveram de pagar multa pela falta de guias e pelo trabalho dos guardas.
Na qualidade de ajudante mor da comarca, competia-lhe assistir ao recrutamento dos soldados. Obviamente que a escolha não era pacífica e daí lhe adveio o ódio de muita gente que... agora se vingava na inquisição.
Inimigos figadais eram também os seus companheiros e concorrentes nos contratos e nas rendas que, também por isso mesmo o teriam falsamente acusado. A título de exemplo veja-se a origem das inimizades que havia entre ele e a rica família cristã-nova dos Novais “rendeiros de várias rendas e comendas”. Sendo o nosso biografado responsável pelo abastecimento do pão da tropa e dispondo aqueles de grande quantidade, não o queriam vender ao preço corrente (7/8 tostões), esperando a subida de preço. Face a tal recusa, André Silva meteu-se a caminho de Espanha, com uma escolta de soldados e, em Puebla de Sanábria, comprou muito pão, a 3 tostões, e o conduziu a Bragança. Resultou que os Novais acabaram por vendê-lo “por quase metade do que pediam”.
Outro caso exemplar sucedeu com um consórcio de mercadores trasmontanos (Lopes Franco, Rodrigues Álvares, Rodrigues Nunes, Fernandes e Peinados) formado para arrematarem o contrato do tabaco nas comarcas de Bragança, Chaves, Vila Real e Lamego. Mas o consórcio não apresentava cabedais suficientes. Recorreram a André Silva para ficar de fiador. Como ele se escusou, o negócio foi por água abaixo e todos eles ficaram seus inimigos e... os seus testemunhos da inquisição ficavam agora desacreditados.
Verdade é que Lopes da Silva acabou por ser absolvido e mandado em paz de volta a Bragança, onde o esperavam a mulher e 5 de seus filhos. Os dois mais velhos estavam já em Londres, fugidos da inquisição, conforme testemunho de seu primo João Mendes Rodrigues, em 1727: (2)
- Disse que se achou com eles em Londres e com eles foi muitas vezes à dita sinagoga assistir com os mais judeus estrangeiros às rezas e cerimónias que se faziam na dita sinagoga...
NOTAS e BIBLIOGRAFIA:
ANTT, inq. Lisboa - pº 7630, de André Lopes da Silva.
IDEM – pº 4939, de João Mendes Rodrigues.
Por António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães