Ter, 23/08/2016 - 14:00
Em tempos propícios a equívocos, vale a pena lembrar que a cidadania é um conceito fundamental que a civilização foi construindo desde os primeiros agregados urbanos, já lá vão mais de sete mil anos. Foi um percurso difícil até se chegar a um modelo de inter-relação que nos trouxe até à institucionalização de direitos, mas também de deveres, garantes de alguma harmonia e tranquilidade, que tenderiam a sobrepor-se ao exercício natural dos instintos, a lei da selva.
A humanidade é o resultado desse distanciamento das pulsões animais, da construção da cultura e da capacidade de lidar racionalmente com a natureza, respeitando-a e às suas criaturas, aliás fundamentais e, por isso, algumas domesticadas há milénios.
A essência da cidadania é a participação política, hoje muito desprezada, pela perspectiva egocêntrica e irresponsável, movida pela comodidade que navega nas águas turvas, onde o videirismo prolifera e a pestilência social se instala.
Os sistemas democráticos têm sofrido um desgaste acelerado, que não permite encarar o que aí vem com suficiente tranquilidade. Mesmo sociedades aparentemente sólidas estão a ser corroídas pela lassidão, pelo abuso, pelo ronco dos predadores, sem mostrarem condições de reacção firme que defenda a cidadania. Cidadania que começa no quotidiano, nas coisas simples, na consciência dos deveres e na temperança da reclamação de direitos.
A toda a hora assistimos ao exercício exuberante de pretensos direitos, à imposição ostensiva de abusos, que alimentam uma fanfarronice execrável. As autoridades, naturalmente, não podem estar sempre à ilharga de qualquer poltrão, o que permite que se instalem verdadeiros paradoxos democráticos.
Resultado espúrio da distorção dos valores da cidadania é o que se passa com a moda da elevação dos animais à condição de gente. Parece que, da leitura das fábulas, alguns não entenderam as personificações e as confundiram, infantilmente, com a realidade. Um hedonismo perturbante selecciona espécies animais, em detrimento de todas as outras, resultando num tempo, de facto, cada vez mais alheado da natureza, mas proclamando-a como referência.
Qualquer dia o reino animal ficará reduzido a cães e gatos, periquitos, tartarugas de aquário e pouco mais. Sob a capa do carinho pelos animais enchem-se as cidades e as casas de duas ou três espécies, castram-se machos e fêmeas para não incomodarem e abre-se caminho para gravíssimos problemas de saúde pública, com aplauso dos grandes fabricantes de alimentos industriais para os bichanos.
Enquanto há cada vez mais crianças e jovens que nunca viram uma galinha ao natural, não suspeitam da existência de cabras saltitantes ou de patos marrecos, vestem-se casaquinhos a cães, aparam-se as unhas dos gatos, passeiam-se ao colo e, pelos vistos, dorme-se com eles na cama.
Cada um fará o que entender. Mas não pode provocar-se o prejuízo dos restantes, nomeadamente nos espaços habitacionais partilhados, nas ruas e outros locais públicos. Os passeios da nossa cidade e espaços ajardinados não podem continuar a ser a latrina indiscriminada de centenas de animais, acompanhados pelos enternecidos donos, sem que as autoridades competentes tomem as necessárias medidas, em nome da higiene e salubridade, valores básicos para o exercício da cidadania.
Por Teófilo Vaz