Não, não é o piropo lançado pelo jovem adulto à polícia boazona que fardada vigia as ruas da cidade. É sim o apelo de J. quando, mais uma vez, o carro da patrulha lhe intercepta a marcha após uma denúncia do roubo de um telemóvel numa superfície comercial. Coisa pouca de facto. No entanto, a descrição da funcionária e as imagens de videovigilância apontam para ele. Abordam-no à entrada do bairro. Sem dramas, como se fossem conhecidos de longa data, conversam. Nada que desperte a curiosidade. A ideia do policiamento de proximidade vai entrando e, hoje em dia, é normal ver a “bófia” a conversar com civis em amena cavaqueira. Longe vão os tempos em que se aterrorizavam as crianças com o “vem aí o polícia” ou, entre adulto, se lembrava a cada instante: “Come com o guarda, mas guarda-te dele.” Miguel Torga plasmou esta desconfiança no conto Fronteira, quando Robalo, apaixonado por Isabel, garante que a prenderá se a apanhar a “passar o ribeiro” (a contrabandear). Promessa cumprida meses depois. A conversa com J. continua também. O caso muda de figura quando, como se recordado do seu dever, um dos polícias o encosta à parede do prédio e o outro o revista. Do telemóvel nem rasto. Sem prova não há crime. As únicas marcas que permanecem não se veem, essas ficam gravadas na alma.
Desde muito novo, J. esteve preso várias vezes. No início penas leves. Quando os roubos passaram a ser de maior monta, o tempo de reclusão aumentou, não sem duas ou três fugas conseguidas que o levaram a Espanha por iguais períodos de tempo. No entanto, fossem as saudades da terra ou porque a vida também não lhe corria bem, voltava sempre e com destino marcado. Passou a encarar o tempo de reclusão como momentos de felicidade. Lá dentro, como diz, tinha cama e roupa lavada. Cumpria horário, davam-lhe atenção e, por bom comportamento, podia trabalhar nas oficinas. O ciclo era o mesmo. Após a pena regressava ao bairro, do bairro ao crime e do crime à cadeia. “– Já sabemos como as coisas são. Não vale a pena investir nesta rapaziada.” – dizia um guarda com experiência, quando J ainda era jovem, na casa dos vinte, e o puseram a frequentar um curso de jardinagem, quando o que ele queria era mecânica.
A história de J. é semelhante à de tantos outros jovens. Nunca irá parar à primeira página do jornal nem sequer irá alimentar a letras gordas nenhuma manchete porque não interessa a ninguém, nem sequer aos técnicos de reabilitação habituados que estão ao fracasso das suas ações, porque sabem até onde podem ir e, sobretudo, de onde não devem passar. Para cumprir pena, os sentenciados da justiça são colocados em estabelecimentos a quilómetros de casa para “formação”; no entanto, cumprida a pena, regressam aos lugares de origem e do crime, sem ninguém perguntar se as causas subjacentes àquele comportamento transgressor já foram debeladas. A menos que haja uma mente distorcida, ninguém é criminoso opção. As autoridades conhecem perfeitamente casos em que crianças de oito, nove, dez, doze anos são obrigados a roubar porque se chegarem à barraca sem nada são castigados pelos próprios pais. Mais tarde replicarão este comportamento e assim se alimenta a cadeia do crime porque ninguém quer verdadeiramente cortar o fio que faz escola.
Enquanto que na cadeia há conforto e as necessidades básicas satisfeitas, “cá fora” não há pão, não há comida nem nada que faça sorrir. Deve a sociedade, por isso, interrogar-se que rumo quer dar aos mais desfavorecidos entre os desfavorecidos. Urge criar verdadeiras políticas de prevenção da criminalidade que vão além das ações de formação para técnicos e, por vezes, para os chamados “grupos desfavorecidos”. É imperioso que se redefinam as estratégias de combate ao banditismo e se coloquem técnicos no terreno em vez de ser à secretária. A dignidade humana tem de ir mais além da ressocialização do prisioneiro. Não basta dar-lhe ações de formação durante, é necessário estar com ele depois, ajudá-lo de uma forma processual a readaptar-se ao meio e a conferir-lhe o direito a um tecto e ao básico para uma vida com dignidade, bastando para tal que, após o cumprimento da pena, se estendam para a sociedade civil os direitos que lhe são consignados enquanto recluso. De uma vez por todas que haja políticas sociais a sério e que o chavão dos “direitos, liberdades e garantias” se efetivem na vida de cada um.
Por Raúl Gomes