Amesterdão, ano de 1681. Com a aprovação do rabi Aboad da Fonseca garantindo a verdade teológica e conformidade com as regras talmúdicas, foi ali publicado um livro que teve ampla divulgação entre a comunidade hebreia e um título pomposo, como era norma naquela época:
- “Dinim de Sechitá y Bedicá, Isto he, de degolar y visitar os animaes conforme nossa sancta Ley, coligidos do sulhan Aruh, traduzidos na língua Portugueza, por bom, e breve methodo ordenados, por o muy Docto Haham Rabi Moseh Rephael de Aguilar”.
Neste livro se patenteia de forma bem clara o rígido formalismo judaico que impõe regras minuciosas para o abate de animais e preparação da carne que se havia de consumir, sendo proibido comprar carne fora das carnicerias aprovadas e vistoriadas pelas autoridades eclesiásticas. A obra foi impressa na tipografia de David Castro Tartas, e o responsável pela edição foi José Franco Serrano, genro do autor e proprietário do manuscrito, o qual ficou com os direitos da edição por um período de 10 anos. O autor falecera dois anos antes e chamou-se Moisés Rafael de Aguilar.
Antes de mais, diga-se que o proprietário desta célebre oficina tipográfica era originário de Bragança, irmão do mártir Isaac de Castro Tartas, casualmente nascido na localidade francesa que lhe deu o sobrenome, quando seus pais iam fugidos da inquisição.
Aguilar, o autor do livro, era tio materno dos irmãos Tartas, ignorando-se a data do seu nascimento, bem como a localidade: Bragança ou Amesterdão?
Provado está que ele frequentou a Etz Haim (a escola pública da comunidade judia, espécie de seminário) e aparece entre os estudantes apoiados pela “aspaga”, um fundo de caridade para subsidiar os estudantes pobres. Os registos indicam a sua frequência entre 1637 e 1640, altura em que surgiu a polémica envolvendo Uriel da Costa, um filósofo maldito que se atreveu a pôr em causa a ortodoxia rabínica e a tradição talmúdica. E foi então que Aguilar, o brilhante aluno da Etz Haim, fez a sua estreia literária, escrevendo um tratado que circulou manuscrito, contra as ideias heterodoxas de Uriel da Costa, intitulado:
- “Respostas a certas propostas de certas pessoas contra a tradição”.
Este facto permite concluir que Rafael usufruía já de um certo reconhecimento académico, e marca o início da sua carreira, longa e brilhante, de pensador judaico. Logo no ano seguinte, de 1641, ele partiu com o rabi Aboad da Fonseca para o chamado Brasil Holandês, acompanhando-o alguns membros da família, nomeadamente o irmão Jacob e o sobrinho Isaac Tartas. Ali foi investido nas funções de rabi / hazan da congregação Magen Abraham de cidade Maurícia, em cujo livro de atas aparece o seu nome.
Ignoramos se foi antes ou depois de embarcar para o Brasil que ele escreveu um outro trabalho que ficaria manuscrito: - “Tratado da Imortalidade da Alma”. Integra-se este na mesma polémica que envolveu os livre pensadores judeus na transição do pensamento religioso medieval para o pensamento moderno científico.
Bem diferente, mas igualmente importante para o estudo das origens da ciência moderna é um outro livro de Rafael da Aguilar que ficou manuscrito, com o título de “Significado das letras hebraicas”. É um trabalho que se rege por fundamentos da Cabala judaica e se integra na chamada “literatura curiosa”, com as letras a ganhar valor numérico e o mundo a ser encarado como um complexo campo de forças, cuja inteligência permitirá prever os acontecimentos.
Não é líquido se contraiu matrimónio em Amesterdão, antes de embarcar para o Brasil, mas sabe-se que nesta terra lhe nasceu o filho Isaac e a filha Ribka. A terceira filha, de nome Sarah, nasceria em 1654, ano em que a família regressou a Amesterdão. Mais filhas e filhos lhe deu a sua mulher Ester, que faleceu em 1702, havendo uma diferença de 23 anos entre o rebento mais velho e o mais novo do casal.
No regresso do Brasil, Rafael tinha já um nome feito como académico e intelectual, integrando o colégio rabínico da comunidade judaica de Amesterdão. De contrário, do ponto de vista económico, nunca conheceria um grande desafogo financeiro. E essa realidade fica bem patente no casamento dos filhos em alguns dos quais foram os irmãos que assumiram a função de padrinhos. Ao contrário de outros líderes religiosos, o rabi Aguilar nunca enveredou pelo mundo dos negócios, nem sequer na pátria do “ouro branco”, o açúcar.
No regresso a Amesterdão, abriu uma escola privada, que teve bastante sucesso. E o maior sucesso adveio-lhe da publicação de um livro escolar, mais precisamente, um Compêndio de Gramática Hebraica, no ano de 1660, com uma segunda edição a sair logo no ano seguinte. O editor e impressor foi Joseph Athias, poucos anos antes chegado à Jerusalém do Norte. E esta obra coloca o nosso biografado entre os grandes mestres da língua hebraica.
Académico prestigiado, Moises Aguilar, ao publicar a segunda edição desta obra, aparece já identificado com professor do Etz Haim, a prestigiada escola rabínica de Amesterdão, substituindo o grande timoneiro Menasseh Bem Israel.
Aquela foi também uma época de muita fé e esperança messiânica. E apareceu então, em Esmirna, um cabalista e rabi chamado Sabbatai Tsevi, apontado como sendo o Messias prometido por Deus a Moisés. E foram muitos os intelectuais e dirigentes religiosos que nisso acreditaram e aderiram ao movimento sabbatiano. Foi o caso de Rafael Aguilar e do seu amigo Abraão Israel Pereira, um rico mercador nascido em Vila Flor que logo deixou a sua casa em Amesterdão e se meteu a caminho de Veneza e da Terra Santa para estar com o “Messias” desde a primeira hora.
Concluindo, diremos que Moisés Rafael Aguilar passou à história como um intelectual académico defensor da tradição rabínica e da ortodoxia judaica face às novas ideias que começavam a espalhar-se pela Europa e punham em causa a visão medieval da vida e do mundo. Faleceu em 1679 e foi sepultado em beth Haim Ouderkerk Amstel, lavrando-se na sua campa a legenda e bem significativa: - “Aguilar louvou Israel durante 40 anos”. Trata-se de uma alusão aos 40 anos que mediaram entre o início e o fim da sua atividade como escritor e mestre da lei, e aos 40 anos que Moisés levou a conduzir o povo de Deus para a terra santa. Se apenas dois livros deste judeu sefardita e trasmontano viram então a luz do prelo, duas dezenas de outros ficaram manuscritos e integram o espólio da chamada “Livraria Montesinhos”, em Amesterdão.
Bibliografia:
REMEDIOS, J. Mendes dos, Os Judeus Portugueses em Amsterdam, ed. A. França Amado, Coimbra, 1911.
BERGER, S, Moshe Raphael de Aguilar, a short Biography, in: Classical Oratory and the Aephardim of Amsterdam.
GOLDFARB, José Luiz, Tratado da Imortalidade da Alma e discurso sobre significação das letras hebraicas: análise de dois documentos judaicos seiscentistas. In: MARTINS, R. A.; MARTINS, L. A. C. P.; SILVA, C. G.; FERREIRA, J. M. H. (eds.). Filosofia e história da ciência no Cone sul: 3º encontro. Campinas: AFHIC, 2004, pp. 249-256.
Por António J. Andrade / Maria F. Guimarães